Por outro lado, daqui a um ano, aproximadamente, terão lugar as eleições que vão escolher o novo Reitor. No discurso público, faz-se crer que a construção do novo Campus vai se reverter na consolidação desta universidade como espaço produtor de conhecimentos úteis ao desenvolvimento do país, enquanto, internamente, alguns candidatos ao cargo de Reitor perfilham-se como os pregoeiros das mudanças.
Essas mudanças, entretanto, não ocorrerão por enunciação governamental e tampouco estão dependentes da iluminação do líder a ser escolhido. Estruturalmente, mais do que uma «comunidade de mercado», onde diversos atores encontram um espaço de investimento e de defesa dos seus interesses, fazendo da Uni-CV uma «empresa» que regulamenta e transaciona o processo de aquisição de um diploma universitário, esta universidade cabo-verdiana entra numa fase em que deverá se configurar como uma «comunidade de valores», onde cada académico deverá tornar-se consciente e responsável pela sua edificação enquanto «projeto do Estado ao serviço da Nação».
1. Na vertente do ensino, a assumpção da Uni-CV como «projeto do Estado ao serviço da Nação», terá de encarnar a vocação histórica do arquipélago. Cabo Verde nasceu da imigração de gentes de vários continentes. No decurso dos séculos, uma complexa relação entre as ânsias de «ficar/partir/voltar» tornou-se uma constante da nossa psicossociologia. Por exemplo, hoje são muitos os talentos que ficam nas ilhas só porque não têm como suportar os estudos no exterior. É provável que a melhoria das condições de trabalho académico na Uni-CV venha a motivar muitos talentos a adiarem o desejo de partir. Porém, decorrente do condicionalismo histórico/cultural apontado, será uma instituição atraente aos estudantes nacionais se conseguir assegurar-lhes que o ensino proposto os prepara para o mundo (numa perspetiva que não implique rutura e/ou desenraizamento). Estamos a falar de política universitária baseada na identidade e não na economia e no mercado.
Por outro lado, há anos que a internacionalização do ensino surgiu como um dos fatores de transformação da Uni-CV. Mas até ao presente não foi consensualizado um debate sobre o que esta universidade pode oferecer e como poderá parecer atrativa aos jovens do mundo. Porém, a lógica dos interesses nos diz que a Uni-CV será uma instituição atraente aos estudantes internacionais se conseguir assegurar-lhe o alargamento das suas competências e conhecimentos sobre algo singular, próprio e exclusivo de Cabo Verde. Neste sentido, é evidente que a alavancagem da internacionalização, como propôs o Secretário de Estado Adjunto da Educação, “na ótica do acolhimento de estudantes, particularmente do espaço lusófono ou do espaço da CEDEAO nos domínios da ciência da educação e da administração pública” é ficção política.
2. Na vertente da investigação, a edificação da Uni-CV como «projeto do Estado ao serviço da Nação», exige que os académicos proponham a institucionalização de um evento científico de carácter geral a toda a universidade que, por exemplo, pode assumir a forma de um Congresso Universitário Bianual, enquanto espaço de exposição dos trabalhos científicos realizados, de debate, e de exposição dos resultados para a sociedade. Se cabe ao campo político e aos seus atores criarem normativos legais de financiamento e indicarem os desígnios nacionais que o trabalho científico deve considerar, não compete a nenhum Programa do Governo determinar o que deve ser trabalhado, nem como deverão trabalhar os académicos. Neste sentido, urge que a Uni-CV se constituía como espaço de «Vocação para a Ciência» e não como espaço de «Vocação para a Política». A defesa da Uni-CV como projeto do Estado implicará, necessariamente, o choque entre os académicos e os políticos, mas enquanto os académicos forem políticos à paisana, ou forem vassalos de interesses político/partidários, tal choque não acontecerá.
3. Na vertente da extensão, a edificação desta universidade pública enquanto «projeto do Estado ao serviço da Nação», terá de fazer dela um espaço de ideias que permita Cabo Verde ver mais do que somente o hoje, e de forma diversificada. Para isso terá de sustentar que o nosso capital económico mais valioso é a pessoa humana e reclamar a primazia dos aspetos culturais. Para os defensores da «pedagogia empreendedora» promotora do novo homo economicus, a universidade deverá ser um espaço técnico, seja como espaço de resolução de problemas sociais, seja como espaço de promoção do crescimento económico, fazendo parecer que os problemas sociais mais relevantes são os de natureza técnica e/ou os que requerem soluções técnicas. Até a língua e o linguajar deverão tornar-se técnicos. Todavia, o fanatismo tecnológico desconsidera que as universidades podem proporcionar meios para a geração de novos padrões de diálogo e de conduta. Se o desenvolvimento tecnológico, tão sonhado, requer imaginação e criatividade, estes exigem como condição de possibilidade a constituição de um espaço de fluição de ideias e de diálogos, e isso pressupõe a valorização dos aspetos culturais endógenos da comunidade.
Em tese, propomos que a Uni-CV só poderá ser um projeto do Estado tornando-se «um farol». O farol D. Maria Pia, que desde 1881 vem iluminado os caminhos daqueles que andam na escuridão, na terra e no mar, retira a força da sua presença na terra firme da Ponta Temerosa. O problema da Uni-CV é que a sua constância não vem da terra, mas da consciência das suas gentes. Mesmo não sendo adeptos do Cristianismo, é necessário que todos assumam o preceito bíblico de que não se acende uma lâmpada para colocá-la debaixo da cama.
Por isso, é nosso entendimento que o próximo corpo dirigente da Uni-CV terá de lutar de forma inflexível pela construção desta universidade como uma «comunidade de valores». Este corpo poderá ser composto por elementos de todas as gerações que compõem esta instituição e, pese embora as suas diferenças, todos terão de ter em comum um fortalecido sentido de Estado, renegando quaisquer subserviências político-partidárias e dispostos, mesmo a custa de suor e lagrimas, a enfrentar a cultura académica estabelecida sob o princípio do status quo. Eis o nosso desafio. Caso fracassemos, o dia 21 de Novembro continuará, como o deste ano, acinzentado e sombreado.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 990 de 18 de Novembro de 2020.