2020 começou como previsto. As contas indicavam que o país crescera no 4º trimestre e em todo o ano de 2019 a taxas mais do que animadoras. Aliás, mesmo no primeiro trimestre de 2020 os resultados foram bons. As festas do ano Bom, dos “REIS”, de São Valentim, e o Entrudo (Carnaval e Cinzas) correram na mais franca normalidade.
Começou a Quaresma e com ela o nosso calvário. Uma borboleta balançou as asas lá pelos lados de Wuhan (no centro da China) e todo o mundo começou espirrando. Nós por cá também, of course. Mais um coronavírus dava o ar de sua graça, desta feita batizada SARS-CoV-2.
Pegou a rota da seda, desembarcou na Europa, voou para as Américas e, devagar, devagarinho, chegou à África e a estas nossas ilhas afortunadas. Estávamos em março, aguardando a Páscoa que aconteceria nos primórdios de abril quando tomamos consciência do que se abatera sobre nós. Sobre o Mundo. E a partir desse momento “pandemia” e “Covid 19” foram os sons que mais fizeram vibrar os nossos tímpanos e as palavras que mais entraram pelos nossos olhos adentro.
Como em um filme de terror, a acalmia e a promessa de bom tempo (lembram-se da introdução do filme “The Hunter”, com Robert de Niro?) do início do ano se transformaram em uma avalanche de infetados e mortos, um pouco por todo o mundo. E digo um pouco porque, face ao número de infetados, se a taxa de mortalidade da doença fosse mais alta…
Os acontecimentos trazem-me à memória o filme “Predador” (o primeiro e creio que o melhor da saga), com a mãe Natureza reagindo violentamente – talvez virulentamente seja o termo mais adequado – às agressões de que vem sendo vítima.
Assistimos a situações insólitas. Portadores de doenças crónicas fugindo dos hospitais e centros de saúde; escolas fechadas e crianças em casa desorientadas; gente que come na Terça o que ganhou na Segunda, os txapu-na-mon e não só, ficando sem trabalho; nada de jogos de futebol zero boates, cinemas fechados, bares, lanchonetes cantinas e restaurantes encerrados; microempresas fechando as portas; direitos suspensos pelo estado de emergência decretado; enfim, um sem número de situações nunca dantes vivenciadas e que, queira o Altíssimo, jamais voltemos a vivenciar.
Nunca tivéramos uma crise aguda de saúde pública com duração superior a 90 dias. E eis-nos amargando já pelo tempo da gravidez de uma burra uma tríplice crise – sanitária, social e económica. Dizem que a vacina está aí ao virar da esquina. Que venha! Que chegue logo! A ver se a crise sanitária é ultrapassada; a crise social debelada e orientada para a nova normalidade; a crise económica controlada; e o crescimento deslanchado.
Mas tudo vale a pena quando a alma não é pequena, já dizia o bardo! E a nossa alma é do tamanho do mundo. E se tivermos aprendido com os erros do passado; guardado memória dos sofrimentos do tempo corrente; e tirarmos ilações para a definição de nova atitude, nova postura e novo comportamento perante a vida, perante o próximo e, principalmente, perante a mãe Natureza, terá valido a pena. Umas propinas bem caras, mas por um aprendizado para gerações!
Millôr Fernandes grafou esta pérola: Deus deve morrer de rir quando escuta dizerem que o homem foi feito à sua imagem e semelhança. O Homem – esse Ser que diz ser o único animal racional e que é o único animal que organiza e financia a matança coletiva de seus semelhantes – é o único animal que tropeça duas vezes na mesma pedra (uma questão de superioridade talvez) será capaz de fazer o que deve ser feito, com as cautelas e seriedade com que deve ser feito, para evitar nova reação virulenta da Natureza e, concomitantemente, se preparar, convenientemente, para o que não conseguir evitar? Será capaz de nova atitude, nova postura e melhor comportamento perante a Natureza e de se organizar devidamente para garantir o bem-estar desta e das gerações futuras da sua espécie e não só?
A pandemia é terrível, mas suas consequências foram (e continuam sendo) fortemente ampliadas pela impreparação do Estado, da Sociedade e da Administração Pública para dar conta de um estado de coisas que nem sequer era imprevisível. Tivéssemos salvaguardado os ecossistemas e talvez a Natureza não tivesse necessidade de atacar para se defender.
Passou, é passado, mas, no pós-pandemia vai ser preciso apostar seriamente na salvaguarda do meio ambiente. Teremos (todos e cada um), para início de conversa, de rever a nossa postura predatória perante a Natureza. Importará que os Estados adiram, sem tergiversar, aos acordos multilaterais que pretendem salvar o planeta e que os donos do capital façam algum esforço para ganhar dinheiro sem exaurir a Natureza. Haverá que redefinir as áreas protegidas e investir forte e feio na vigilância das mesmas e na fiscalização das atividades exploratórias e extrativas que tendem a destruir a casa comum de todos nós. Comum e única. Não temos para onde ir se a terra não puder continuar a acolher-nos.
Há que redesenhar o Sistema Nacional de Saúde (SNS). O subsistema público, o subsistema privado e o cooperativo não poderão continuar se relacionando como se vêm relacionando. Importará que os poderes públicos equacionem uma aliança estratégica em que todos os subsistemas se juntem para gerar sinergias com o escopo para perseguir o bem-comum, pelo menos em tempos de crise grave e aguda de saúde pública. Pelo menos nessas ocasiões mister se torna que sejam acionadas, automaticamente, todos os subsistemas para um funcionamento concertado, sob a batuta das autoridades sanitárias (central e locais). Um por todos e todos por um terá de ser o lema. Importará, outrossim, que, nessas situações, seja garantido o acesso universal aos cuidados de saúde. As unidades de prestação de cuidados de saúde atenderão não em função de convénios, atestados, ou cash, mas em razão da proximidade geográfica.
Grandes e mui coerentes investimentos na inovação e na capacitação do sistema educativo e dos seus integrantes serão exigíveis. Os professores não podem ficar na situação de tomarem contacto com o ensino à distância quando as circunstâncias apertarem; o acesso a internet não poderá continuar com limitações; a posse de terminais de acesso à net não poderá continuar sendo aleatória; nem a instalação das demais infraestruturas necessárias às tela-aulas deve aguardar que a crise chegue primeiro. Haverá, pois, que apostar na inovação, na capacitação dos docentes, nas TIC – Tecnologias de Informação e Comunicação, em infraestruturas para o ensino à distância, na massificação do acesso à internet. No limite, poder-se-á começar a ensaiar eventual recurso a alguma inversão na estratégia ensino-aprendizagem – receber lições em casa, online, e se reunirem, a espaços, para fazer trabalhos de casa em salas de aula, com assistência.
Com os olhos postos no futuro, no pós pandemia talvez também se torne necessário um certo olhar sobre as relações laborais. Alguma evolução do estado de permanente confronto para uma era de parceria entre o trabalho e o capital talvez servissem para uma convergência na concertação virada para o reforço da coesão social. A reforma da legislação laboral (a flexibilização precisa ser mais racional e servir às duas partes), o estímulo, se não à parceria, pelo menos a um melhor diálogo entre o trabalhador e o empregador (não o diálogo de surdos e os monólogos cruzados que vêm sendo praticados); e uma melhor fiscalização do trabalho; podem ser vias a serem exploradas. Do que não há dúvidas é de que há necessidade de maior, melhor e maiores cuidados em matéria de higiene e segurança no trabalho. Aqui já não será uma questão de talvez.
A pandemia do Covid 19 não será a última crise aguda de saúde pública que a humanidade enfrentará. O jeito será, portanto, evitar os erros do passado e operar uma nova largada em bases bem mais responsáveis e… científicas. Por isso, caberá a nós, na nossa vez, trabalhar por uma nova atitude, por menos ganância e por maior proatividade na prevenção de crises, para que possamos passar às gerações vindouras um planeta ainda habitável e com um historial mais lisonjeiro de pestes, pragas e pandemias.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 995 de 23 de Dezembro de 2020.