EDITORIAL : Solidariedade

PorHumberto Cardoso, Director,28 dez 2020 9:29

Já próximo do fim deste ano atípico de 2020 e em plena época natalícia as pessoas em todo o mundo animam-se com a perspectiva de virem a ser vacinadas contra a Covid-19 e de se verem livres desta pandemia que se tem revelado desastrosa e mortífera para a humanidade.

O futuro já não parece tão complicado face ao feito impressionante de, em tempo recorde, se ter desenvolvido vacinas revolucionárias, tanto na forma como actuam e mobilizam o sistema imunitário como ao nível de eficácia atingido (à volta de 95%), e prontas a ser aplicadas massivamente nos próximos meses. Renovaram-se as esperanças de que mais cedo do que seria esperado haverá condições para a retoma económica e alguma normalização da vida social e cultural.

O facto de isso resultar de uma cooperação internacional inédita, traduzida em investimentos massivos na pesquisa científica com foco na produção de vacinas e também na colaboração estreita entre comunidades científicas de diferentes países, funcionou como um bálsamo para o sofrimento suportado com os milhões de mortos e os confinamentos obrigatórios. Por ter trazido resultados por altura do Natal reforçou a importância da solidariedade entre as pessoas, visto agora como um sentimento que não deve ficar só pela família e pela nação mas estender-se a todos num abraço global. Os desafios que se colocam à humanidade a começar pelas alterações climáticas e incluindo a transição energética e outras pandemias que, segundo os experts, inevitavelmente irão se verificar no futuro, clamam por essa solidariedade global.

Outrossim a pandemia veio pôr um foco especial sobre as graves consequências do aumento da desigualdade social que desde a Grande Recessão de 2008 se tornou particularmente perceptível na maior parte dos países do mundo e em especial nas economias mais desenvolvidas. Ficou visível que as camadas sociais mais pobres e mais desfavorecidas foram particularmente atingidas pela doença e desproporcionalmente sucumbiram devido ao efeito cumulativo dos sintomas provocados pelo coronavírus e das comorbidades de que já padeciam. Na sequência da covid-19 já não havia como negar os sinais, que vinham já antes, que o modelo económico social suportado no livre movimento de capitais e em cadeias mundiais de valor num quadro de crescente globalização da economia tinha deixado de funcionar para todos. Também ninguém podia esconder que as tensões sociais criadas, a perda de status de sectores da população anteriormente pertencente à classe média e o alargamento de cinturas de pobreza estavam a afectar gravemente a própria saúde das pessoas e contrastavam com a concentração desmedida da riqueza numa pequena percentagem da população.

O desencanto provocado pela quebra do contrato social implícito na crença que todos ganham com o crescimento económico tem vindo a alimentar o populismo e a crise das democracias. Reverter a situação vai implicar um esforço dirigido para aumentar a confiança e a solidariedade entre as pessoas. A exemplo da cooperação internacional para produzir vacinas, deverá haver uma luta ao nível local e nacional para mais solidariedade social, cívica e política. A luta contra a covid-19 será bem-sucedida se, a par da massificação das vacinas e dos avanços no tratamento dos sintomas da doença, se manter o ambiente social de confiança e de oportunidade que motive as pessoas a proteger umas às outras e a desenvolver uma nova etiqueta na relação interpessoal, mais consentânea com a presença ainda por alguns anos do coronavírus e do seu modo de contágio.

Nos países que vivem com o sentimento de quebra do contrato social, um outro público a ser alvo de uma nova abordagem é o constituído pelos chamados trabalhadores essenciais. Ou seja, todos aqueles que a exemplo dos profissionais de saúde, da segurança, da protecção civil, dos trabalhadores nos supermercados e em toda a logística de abastecimento e distribuição permitiram que o confinamento se verificasse sem perturbações de maior. Reconhece-se que o teletrabalho que permitiu que apesar de tudo muito nas empresas e no Estado funcionasse em tempo de “lockdown” só foi possível porque trabalhadores essenciais continuaram a deixar a segurança das suas casas e a exporem-se no exercício da sua actividade. Ao longo da pandemia pagaram um duro preço em número de infecções e também de mortes. Mais solidariedade significará para esse grupo um maior apreço e reconhecimento do seu trabalho e o inflectir da tendência na degradação dos níveis salariais desses serviços quando outras profissões têm ganhos desproporcionais.

Em Cabo Verde a grande luta é ter-se solidariedade social sem ser esvaziada pelo assistencialismo que torna as pessoas dependentes e construir a solidariedade cívica para além das afinidades partidárias e dos interesses dos partidos. A covid-19, a exemplo do que aconteceu noutros países, revelou as vulnerabilidades existentes e penalizou quem mais em situação desvantajosa vivia. As dificuldades em controlar surtos em vários pontos do território nacional têm a ver com as condições socio-económicas e habitacionais das populações que dificilmente conseguem cumprir com as exigências dos confinamentos, do distanciamento social e de higienização permanente das mãos e das superfícies. Para ultrapassar isso há que ir para além dos modelos de desenvolvimento que geram ganhadores entre os que giram à volta do Estado e dos projectos de ajuda externa e perdedores entre aqueles que deviam ser os putativos benificiários dos mesmos.

Em tempo de Natal é de maior importância relembrar o papel da solidariedade na consecução de todos os direitos humanos e como base para cooperação entre as pessoas e a renovação da confiança indispensável para a construção da prosperidade. Uma solidariedade também acompanhada a nível individual de auto responsabilidade e sentido de dever para com a comunidade de modo a não ser pervertida pela tentação de culpar o outro, de se vitimizar e de se deixar consumir pelo ressentimento. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 995 de 23 de Dezembro de 2020. 

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,28 dez 2020 9:29

Editado porAndre Amaral  em  28 dez 2020 9:29

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