Por uma Justiça para o século XXI. Quid Ius? O regresso da Juris-Prudência esquecida.

PorCasimiro de Pina,17 mar 2021 11:21

A mainstream, ancorada no centenário senso comum dos juristas, definiu a questão da morosidade processual como a maior chaga da justiça cabo-verdiana.

É evidente que a justiça – rectius, a resposta-decisão dos tribunais, sejam eles quais forem – deve ser célere, atempada e equitativa (cf. o art. 22.º/1 da CRCV).

A morosidade processual é, sim, um problema muito sério e traduz-se, muitas vezes, na pura denegação da justiça: “…aquelles que tarde vencem ficam vencidos”, como escrevera, chamando a atenção para os malefícios decorrentes dos atrasos da justiça, o Infante D. Pedro, numa carta remetida a partir de Bruges, corria o século XV, ao seu irmão D. Duarte, o futuro rei de Portugal.

É pena que os nossos tribunais superiores ainda não tenham produzido jurisprudência consistente sobre a questão do “prazo razoável” de decisão, definindo, assim, por imperativo constitucional, a matriz do chamado processo equitativo, como se faz na exigente União Europeia, com condenações frequentes aos Estados mais relapsos.

A protecção judicial é, nestas coisas, deficiente e os próprios juízes muitas vezes não cumprem os prazos legais a que estão adstritos.

No entanto, o problema principal da nossa justiça não é esse. Não.

Evitemos o pensamento redutor, não filtrado, comme il faut, pela crítica epistemológica.

O grande desafio da justiça cabo-verdiana, que recebeu uma herança pesada da politização absoluta do tempo do Partido Único (em que o sr. Ministro da Justiça nomeava directamente os juízes, de acordo com as “conquistas revolucionárias” e os interesses do partido, a quem interessava a manutenção desse como que schmittiano e vergonhoso “estado de excepção” permanente), é de ordem cultural.

Os prejuízos causados pela pretérita legislação do terror (veja-se, por exemplo, o Decreto Lei n.º 36/75, de 18 de Outubro, que possibilitava, neste País, a punição criminal retroactiva – ignorando o princípio “nullum crimen sine lege”, numa espécie de Direito Penal do Inimigo avant la lettre, bem antes, note-se, das controvertidas reflexões de Günther Jakobs – ou, então, o Decreto-Lei n.º 95/76, de 30 de Outubro, que atribuiu à Direcção Nacional de Segurança, a famigerada “polícia política”, a faculdade de instruir processos criminais e permitia, também, a detenção de “cidadãos” cabo-verdianos durante o período de 90 dias, sem qualquer culpa formada!) não são fáceis de ultrapassar: permanecem no inconsciente colectivo e inquinam, ainda, determinadas práticas institucionais.

Não é fácil transitar, de facto, de um Estado de não-direito, ou abertamente contra o direito, para um Estado de direito democrático, situado nos antípodas e governado por uma Constituição da Liberdade, como diria Hannah Arendt.

Daqui fluem consequências heurísticas que não podem ser olvidadas.

A consolidação da consciência é um processo que requer uma certa meditação e uma dolorosa “inversão de marcha”. Trata-se de um bico-de-obra.

É preciso ir, se se quiser, ao Tibete profundo da antropologia filosófica.

Isto implica, já o sabemos, uma profunda alteração de hábitos. De práticas morais. De cultura constitucional, teorética e cívica.

O juspublicista Juarez Freitas explicava que, num verdadeiro Estado de direito, todos os juízes são juízes constitucionais.

Temo que este preceito básico não tenha sido devidamente interiorizado nestas plagas do Atlântico.

Há que ultrapassar a velha cultura burocrática e assumir, mediante uma aturada reflexão acerca do “giro linguístico-filosófico” das últimas sete décadas, fenómeno praticamente ignorado entre nós, as novas conquistas hermenêuticas e jurisprudenciais, incorporando, sem reservas mentais, a nova ética da argumentação.

Deixemos para trás a Begriffsjurisprudenz e os seus mitos circulantes.

Não é possível termos, hoje, uma melhor Justiça sem repensarmos o Direito.

A primazia da Constituição e dos direitos fundamentais (bem como dos princípios jurídicos axiológico-normativos, que preenchem, em síntese, aquela preciosíssima função de “duplo interdito” de que falava Mireille Delmas-Marty) é o ponto nevrálgico do tour de force do direito contemporâneo.

A Justiça existe para se fazer.

O ponto-chave é, pois, a superação do método linear da subsunção (herdado da França oitocentista), através de uma metódica de concretização capaz de proteger eficazmente a Pessoa Humana.

Trata-se, efectivamente, de um novo modo-de-produção do Direito.

O julgamento tem de redescobrir a essência da verdade jurídica e, pela incorporação dos princípios jurídicos, o seu nomos fundamentante (numa análise exemplar, veja-se Sergio Cotta, Quidquid latet apparebit: le problème de la vérité du jugement, in http://www.philosophie-droit.asso.fr/APDpourweb/59.pdf).

Por aí se recorta, na sua pujança libertadora, o direito-ius…para além da lex.

É esta a seiva da autêntica Magistratura, que só é soberana, recorde-se, pela sua vocação de, seriamente, fazer direito. De decantar a coisa devida.

Ou então, como estabelece singelamente a nossa Constituição, de dizer (= iurisdictio, supondo, claro, um juízo concreto-hermenêutico-responsabilizante) a justiça em nome do povo.

Legitimando-se socialmente pela auctoritas daí decorrente, e não pela força bruta de um qualquer martelo corporativo.

Só assim o Direito será, como sagazmente defendia Hans Welzel, o poder que tutela e o valor que obriga.

Sem isso, sem a inteira assumpção deste acquis civilizacional, as célebres reformas e os gestos vagos dos circunstantes não passarão de mera cosmética, para inglês ver.

Isto é, uma fachada ruidosa e sem qualquer conteúdo humanista e emancipador.

Um “direito” assim seria deveras triste, inaceitável e antidemocrático.

Justificar-se-á aqui o appeal to Heaven de que falava John Locke?

Haja, todavia, juízes em Berlim. E em todas as ilhas, regiões, províncias e cidades deste mundo sublunar.

Salvemos Antígona da cruel arbitrariedade de um Direito sem alma.

Evitemos aquela preocupante “morte espiritual da Constituição” prognosticada, num texto lúcido, por Jorge Carlos Almeida Fonseca, o pior dos destinos, apetece-me agora acrescentar, calcado, dir-se-ia, na larvar ignorância e na vil lotaria dos egoísmos institucionalizados.

Os antigos, com uma sabedoria perene, tocante e imorredoira, construíam palácios de Justiça ao lado de Igrejas.

É uma proximidade essencial! Que convoca todo um património sagrado, de ideias, projectos humanos, fidúcia, esperança e comunhão valorativa.

Os juízes são, por definição, os sacerdotes da Justiça. Ou então não prestam, e definitivamente nada são.

Não precisamos de robots formados-à-pressa, trajando vestes cujo simbolismo luminoso não compreendem.

Não se pode falsificar a ideia de Direito. Existe um vínculo primordial, a ratio da congregação dos juristas.

Ora, a verdadeira reforma que importa fazer não é de Códigos.

É de mentalidade(s), de concepção do Direito, de valores.

Isso não depende das commodities.

O Direito só recuperará a sua dignidade quando investir, como no-lo diz concludentemente Eduardo Vera-Cruz Pinto, na “…criatividade da ars inveniendi ao serviço da solução justa para cada caso…O modelo jurisprudencial do Direito não só pode sobreviver, como é, pelo retorno à fonte, a única forma de o Direito resistir”.

Para isso, e como alega ainda esse ilustre professor da Escola de Lisboa, o juiz tem de superar a rotina do mecanicismo conceptual, e deixar de ser o “burocrata insensível das estatísticas”.

Em diálogo com Hasso Hofmann, toca-se aliás num ponto decisivo:

“Os jurisprudentes são os artistas que numa sociedade de consumo dão voz ao Direito justo. Uma voz que se ergue sobre o barulho confuso e disperso dos sons das leis”.

O que requer, obviamente, um ensino de sensibilidades e da philosophia perennis. Não quadra, jamais, com o facilitismo.

Sendo isto, todavia, como diria um Lênio Streck, “uma obviedade tão óbvia quanto obviamente ignorada”.

É por isso que as leis (expressão máxima da democracia) podem ser declaradas inconstitucionais! E expurgadas, vejam bem, do sistema jurídico.

O Direito não se confunde com a lei.

Radica, antes pelo contrário, numa certa “consciência axiológica geral”, situada acima dos poderes de plantão.

O Direito é uma ideia regulativa, pressupondo um certo sentido e uma coerência sistémica, identitária e deontológica.

O ordenamento jurídico não se confunde com o amontoado de Boletins Oficiais, como pretendem, ainda, alguns amanuenses.

Na Inglaterra, os juízes sempre foram vistos como a encarnação máxima da soberania e os fiéis depositários da “common law”, numa tradição nobilíssima que, desde cedo, aprendeu a distinguir entre o gubernaculum e a jurisdictio, como fazia o grande Henry de Bracton em plena Idade Média.

É preciso compreender esta coisa decisiva: o direito não está no início (na lei, no texto escrito).

O decisivo não é o texto-norma.

O direito está, antes, nuclearmente no fim, na prático-decisória actividade judicativa, e na específica intencionalidade axiológica que este proceder, de inegável teor jurisprudencial, afinal convoca, mediante um juízo ético-crítico-indagativo que oscila, num “ir e vir” fundamentante, entre o caso-problema e o sistema jurídico (com as suas várias camadas constitutivas – ver, quanto a isto, Fernando José Pinto Bronze, “O Corpus Iuris Lusitani no Hemisfério do Sistema Jurídico Romano-Germânico – Considerações Introdutórias”, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, n.º 74, 1998, pp. 67-87), garante último da racionalidade jurídica e do seu correcto decidir imparcial-e-prático-fundamentado.

Não se concede, aqui, nem um milímetro de espaço às aporias do “direito livre” ou ao solipsista “activismo” judicial suportado em crenças pessoais.

Quando é que compreenderemos esta obviedade tão óbvia quanto obviamente ignorada?

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Autoria:Casimiro de Pina,17 mar 2021 11:21

Editado porAndre Amaral  em  17 mar 2021 11:21

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