Elites, Recursos Intangíveis, Valorização Estratégica e Desenvolvimento

PorFátima Monteiro,11 out 2021 8:33

PhD, Investigadora. Presidente do IEMAC Instituto de Estudos da Macaronésia
PhD, Investigadora. Presidente do IEMAC Instituto de Estudos da Macaronésia

​Em vésperas de eleições presidenciais em Cabo Verde, revisito aqui alguns temas de estimação, esperando que o candidato que vier a ocupar o mais alto cargo da nação exerça a sua magistratura de influência efetivamente para proveito da Nação, e não do partido que apoiou a sua candidatura.

Desde a independência, em 1975, os governos de Cabo Verde têm procurado tirar algum partido da localização privilegiada do arquipélago, situado no cruzamento das principais rotas do Atlântico. No entanto, o país continua longe de atingir o seu pleno potencial marítimo e estratégico. Com uma economia débil e sujeita a fatores externos imprevisíveis, Cabo Verde deverá romper com alguns dos paradigmas instalados e adotar estratégias de desenvolvimento que lhe permitam ultrapassar o permanente estado de incerteza em relação à sua segurança alimentar e o baixo padrão de vida da maioria da sua população. Isso só é possível com o cabal aproveitamento dos recursos intangíveis à disposição do país.

Como defende João Estevão, um avanço significativo no desenvolvimento de Cabo Verde depende da nacionalização da sua economia, isto é, da capacidade endógena (incluindo-se aqui o contributo da diáspora) de gerar recursos, e não da ajuda externa. Reconhecidamente, os recursos tangíveis mais importantes estão no mar e na posição estratégica do arquipélago, e os recursos intangíveis nos seus cérebros. Grande parte da riqueza que o seu mar encerra mantém-se inexplorada, devido à resistência e má vontade dos decisores em absorver o capital de conhecimento científico e técnico que os cabo-verdianos têm a oferecer.

A criação da Zona Económica Especial Marítima de S. Vicente (ZEEM) foi uma decisão promissora, mas que de pouco servirá se não se lhe agregar massa crítica e conhecimento científico e técnico de forma criativa e descomplexada. De pouco servirá ainda se o país não for capaz de se projetar para fora das suas fronteiras, exportando serviços e produtos de elevado valor acrescentado compatíveis com os padrões do mercado norte-atlântico. Do mesmo modo, dificilmente os recursos do mar e a posição estratégica privilegiada de Cabo Verde poderão traduzir-se em riqueza se a segurança e a sustentabilidade das suas águas não forem devidamente salvaguardadas.

Para um país oceânico, cuja ZEE atinge os 734.265km2, que tem uma região de Busca e Salvamento (SAR) sob sua responsabilidade com 645.000km2 e pretende estender a sua plataforma continental para além das 200 milhas náuticas, a capacitação das suas forças de segurança e fiscalização marítima são condição sine qua non. A pesca ilegal, a poluição marinha e o tráfico de droga são ilícitos desde há muito bem identificados no espaço marítimo cabo-verdiano, e a situação piorará previsivelmente caso o Estado não disponha dos meios necessários para os combater eficazmente.

Acresce que Cabo Verde está vinculado a compromissos regionais de combate ao crime no mar na região no Golfo da Guiné, mormente com a recolha, tratamento e partilha de intelligence. O Centro de Comunicação da zona G do Golfo da Guiné, instalado em 2016 no porto da Praia decorre desses compromissos, assim como a participação da Guarda Costeira em missões conjuntas na região da CEDEAO no âmbito da PESCAO – programa europeu de apoio no combate à pesca ilegal.

Embora haja alguma assiduidade de missões conjuntas com as marinhas de países amigos, em particular com Portugal, Espanha, França e Estados Unidos, o certo é que estas missões resultam fundamentalmente da iniciativa externa, e não de um programa coerente que dê resposta de forma sustentada às necessidades nacionais. O Centro de Comunicação da Zona G mantém-se inoperativo, ilustrando exemplarmente a incapacidade de concretização de políticas e acordos regionais.

Assumindo-se que a frota da Guarda Costeira consegue assegurar um patrulhamento de rotina nas águas arquipelágicas e territoriais, a sua frota e efetivos são manifestamente insuficientes para proteger os recursos existentes na ZEE dos depredadores. Menos ainda serão capazes de sustentar qualquer ambição de Cabo Verde vir a afirmar-se como um parceiro relevante no contexto do Atlântico médio-sul.

O Plano Estratégico de Desenvolvimento da Guarda Costeira (2017-2027) prevê o reforço da atual frota de sete navios com a aquisição de mais dois navios patrulha oceânicos (o único hoje existente, Guardião, está avariado há mais de um ano), e várias lanchas de intervenção rápida e fiscalização costeira. Para operacionalizar estes meios, está previsto um investimento significativo na formação. No entanto, pouco ou nenhum investimento endógeno tem sido feito nesse sentido, enquanto, por oposição, iniciativas válidas provenientes da diáspora são fortemente hostilizadas.

Sendo ambicioso, o PEDGC não passa disso mesmo, uma ambição. A sua concretização depende de diversos fatores, incluindo a capacidade do Estado cabo-verdiano gerar recursos financeiros na ordem dos milhões de euros/dólares durante o período da sua vigência. Se num momento pré-pandemia alcançar essa meta já era difícil, muito mais será alcançá-la em fase pandémica. A menos que haja a abertura necessária por parte dos decisores para abrir mão do centralismo governativo e assumirem-se, antes de mais, como facilitadores – por oposição a obstrutores – de esforços e iniciativas de agentes não-estatais credenciados.

É senso comum que uma concertação de esforços inclusiva e que transponha o pequeno circuito ‘oficial’ e burocrático do Estado tem um efeito multiplicador considerável de recursos. Com a diminuição drástica das já modestas receitas do Estado em consequência da pandemia, seria um sinal de maturidade e patriotismo dos decisores cabo-verdianos aproveitar todos os recursos que lhe são disponibilizados, começando pelos intangíveis. Não o fazer, tem impacto negativo a vários níveis.

A parceria especial com a União Europeia permite a Cabo Verde beneficiar de financiamentos substanciais para capacity building se soubervalorizar a relação de proximidade e as afinidades com os demais arquipélagos da Macaronésia. Os contactos, manifestações de interesse e visitas são múltiplos, os resultados práticos ficam muito aquém do potencial. Fundamentalmente, a parceria especial tem-se restado pela ajuda orçamental e complementos, justificados nos últimos anos pela emergência hídrica e pela pandemia.

Os Estados Unidos da América, onde se estabeleceu a primeira e maior comunidade cabo-verdiana da diáspora, continuará a ser um parceiro privilegiado, devido em primeiro lugar e acima de tudo à existência dessa diáspora e da sua capacidade de influenciar os decisores americanos. No entanto, preferem os decisores cabo-verdianos ignorar essa realidade e olhar para o cabo-verdiano-americano, incluindo os que ocupam posições de destaque na sociedade americana, como eterno emigrante que nunca se gradua a cidadão americano de pleno direito.

Permanece o fascínio pelas ‘relações de Estado’ e pelas conversações com os ‘homólogos’, próprio dos dirigentes de países que até há bem pouco tempo não tiveram a possibilidade de ocupar um lugar de relevo no concerto das nações por vicissitudes da história. Ser ‘oficial’, ou seja, ser detentor de um cargo publico, continua a conter um significado no imaginário de muitos dirigentes pós-coloniais que os impede de assumir a postura do servidor publico e do prestador de contas, no afã de deter poder e protagonizar história.

Mas entenda-se, Cabo Verde só obterá resultados palpáveis e duradouros no seu caminho para o desenvolvimento se souber cooptar cérebros, e por seu intermédio tiver acesso aos recursos que não são gerados através da burocracia do Estado e seus ditos canais oficiais. Estes recursos incluem assessoria qualificada, transferência de conhecimento para o setor produtivo, além do poder de cidadania e da capacidade de networking das elites expatriadas. São estas acima de tudo que, juntamente com os recursos humanos internos, produzem bens intangíveis sem os quais os bens tangíveis continuarão a escassear e o desenvolvimento a marcar passo ou a recuar. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1036 de 6 de Outubro de 2021. 

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Autoria:Fátima Monteiro,11 out 2021 8:33

Editado porAndre Amaral  em  15 jul 2022 23:28

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