Foi um processo envolvendo um grupo de jovens de Achada Lém, em Santa Catarina, que me chamou a atenção para um problema que não me é estranho: que a Justiça (aquela formal, dos tribunais e das polícias) é implacável para os pobres e muito compreensiva para os ricos.
Não vou falar sobre o processo, que já conheço minimamente e que se encontra em fase de recurso para a Relação, nem tão-pouco, vou desculpabilizar quem, segundo a acusação, assaltou pessoas na rua, roubou residências, alvejou à pedrada… Mas chamaram-me a atenção dois pormenores: 1. A acusação de “associação criminosa”, envolvendo no mesmo barco supostos culpados e evidentes inocentes; 2. A pressa em ler a sentença às duas horas da madrugada, sem a presença de ninguém, num ato aparentemente clandestino e ilegal… com a aplicação de penas até 12 anos, mesmo tratando-se, num ou noutro caso, de jovens sem antecedentes criminais.
As prisões estão cheias de miseráveis, de gente pobre muito jovem que nunca teve oportunidades na vida. As prisões são um círculo interminável de reprodução de delinquência e de comportamentos antissociais, de revolta e de sofrimento, que alimentam um sistema securitário manifestamente corrompido.
Lá do alto da sua patética autoridade, os magistrados enviam, todos os anos, dezenas e dezenas de pobres para a cadeia, ao mesmo tempo que protegem os bandidos que se abotoam a bens públicos e praticam outras manigâncias contra um país inteiro, sempre com um cínico sorriso nos lábios e um alarve ar de respeitabilidade...
A propósito deste e de outros processos (este é apenas uma nota de rodapé de uma monstruosidade mais vasta), logo surgiram nas redes sociais, tomando como pretexto uma manifestação de repúdio pela sentença, organizada por familiares em Assomada, a ideia que se estaria a defender a impunidade de criminosos e irrelevar o sofrimento das vítimas, quando o que se exigiu foi uma Justiça Justa.
O perfil dos justiceiros de plantão, que têm uma grande dificuldade em perceber a diferença entre justiça e vingança, é este: pessoas acima de quarenta anos, “muito cristãs” e “tementes a Deus”, que vão à missa ou ao culto, pelo menos, uma vez por semana, mas não perceberam absolutamente nada do referencial de valores de Jesus de Nazaré e insistem no “mata e esfola”, ao mesmo tempo que, alegremente, votam no próximo ladrão que os vai roubar.
É muito cansativo explicar a estas pessoas conceitos básicos!
Uma Justiça assente na arbitrariedade
Vamos por partes. Ninguém está a defender a impunidade de criminosos. Pelo contrário, penso que é o próprio sistema judicial a defender a impunidade de um tipo particular de criminosos: os que têm dinheiro, influência política e ascendente social. É um facto!
As prisões estão cheias de pobres. Também é um facto! E a esmagadora maioria das vítimas é pobre. Outro facto!
Temos, pois, uma Justiça assente na arbitrariedade, que ao contrário de ser justa é vingativa, e que se está borrifando para a dor das vítimas. Do ponto de vista da Justiça, criminoso e vítima estão precisamente ao mesmo nível: não contam para nada! Nem o criminoso é recuperado para a sociedade, nem a vítima vê garantido o seu direito legítimo ao ressarcimento.
Os números falam por si: a esmagadora maioria das vítimas não vê o seu prejuízo reparado. Tão-pouco os criminosos têm acesso a coisas básicas para a sua inserção social. Não têm emprego, não contam com meios de subsistência mínimos, e o seu futuro já está traçado: o regresso à prisão e uma vida infindável de idas e vindas, entre uma sociedade que os rejeita e um sistema prisional que reproduz os “comportamentos desviantes” (como costumam dizer os pataratas da “psicologia” e da “sociologia” penitenciária).
A questão é esta: as penas de prisão são, genericamente, instrumentos de vingança! Não servem às necessidades de segurança da sociedade, nem acautelam os interesses das vítimas.
Por outro lado (e apropriando-me, com uma pequena alteração, de uma citação imputada a Jesus de Nazaré), é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, do que um rico ou poderoso entrar numa prisão. Conhecem algum corrupto rico e poderoso que esteja em São Martinho?
Se a Justiça não é justa, se não restitui nada às vítimas e não as compensa, serve para quê?
Cadeia Central da Praia: degradação da condição humana
O Provedor de Justiça, em setembro de 2019, deu a conhecer ao país um relatório sobre a Cadeia Central da Praia, onde, entre outras coisas, traçava um cenário dantesco do principal estabelecimento prisional de Cabo Verde, onde a Constituição da República e a legalidade democrática ficam do lado de fora do portão, onde não se pratica a separação de reclusos por tipologia de crimes, onde se mantêm preventivos misturados com condenados e se armazenam, em condições que contrariam todas as recomendações médicas, detidos com doenças mentais.
Soube-se, ainda, que as celas estão sobrelotadas, que os reclusos fazem as suas necessidades fisiológicas em sacos de plástico, e que, como não existe qualquer mobiliário, sacos com fezes são colocados no chão partilhando o mesmo espaço com sacos de alimentos levados por familiares, “num processo – são palavras do Provedor – objetivamente degradante da condição humana”.
Mais, ainda, o que se passava, à época, na Cadeia Central da Praia, era um atentado à saúde pública, como o relatório tão bem reproduz: “Como reflexo das condicionantes de alojamento, higiene a salubridade (…), verifica-se que estas estão em crise, sendo que a falta de água permanente é o elemento mais crítico da cadeia a par da sobrelotação. A falta de água pode ser causa de alterações patológicas do estado de saúde dos reclusos”.
De lá para cá não sei se as autoridades tiveram em conta o Relatório do Provedor de Justiça, mas, ao que sei, não foram notadas no estabelecimento prisional alterações de substância. E, tendo em conta a emergência da pandemia da covid-19, logo nos primeiros meses de 2020, estou em crer que, pelo contrário, a situação se tenha degradado.
Para que servem as prisões?
Uma coisa sei, até por ser uma realidade transnacional, há um mundo oculto para além dos muros das prisões, um mundo onde a iniquidade e o desrespeito pela pessoa humana é lei.
As prisões estão cheias de pobres, de excluídos sociais a quem, boa parte das vezes, não foi dada qualquer oportunidade. Numa sociedade onde a disparidade entre pobres e ricos assume níveis impensáveis à luz de um mínimo resquício de justiça social, as prisões são um instrumento da guerra contra os pobres, os culpados convenientes, mas são também instrumento de vingança ausente de qualquer sentido elementar de justiça.
A ajudar à festa, temos um sistema judicial manifestamente ao serviço de ricos e poderosos, que não se inibe de usar de mão pesada para a maioria e ser condescendente com a minoria dos que, servindo-se de uma suposta autoridade e/ou respeitabilidade, utilizam a lei e as regras sociais para praticarem crimes e abotoarem-se a bens públicos.
Temos, ainda, uma Justiça que não respeita as vítimas nem garante o seu direito à reparação. Uma Justiça que trata criminosos e vítimas ao mesmo nível: não contam para nada! Nem o criminoso é recuperado para a sociedade, nem a vítima vê garantido o seu legítimo direito ao ressarcimento!
A grande questão é esta: se não cumprem a sua função de ressocialização, para que servem as prisões?
É tempo de iniciarmos este debate e, mais que isso, de mobilizarmos consciências e ativismos por uma Justiça Justa!
*ex-jornalista, ativista social
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1044 de 1 de Dezembro de 2021.