A regulação do mercado da contratação pública cabo-verdiana

PorManuel Mendes Garcia*,27 dez 2021 7:17

É sabido que o Estado e os serviços da sua Administração Direta e Indireta, as Autarquias Locais, as Empresas Públicas do setor empresarial estadual ou autárquico e outros organismos de direito púbico, recorrem ao mercado para efetuarem compras com a finalidade imediata da obtenção dos meios necessários ao desempenho das respetivas missões.

Em muitos casos, a esta finalidade imediata acresce a procura de realização de finalidades secundárias, já não diretamente relacionadas com os benefícios das prestações contratuais, mas com o contexto da celebração do contrato.

A contratação pública representa uma oportunidade para o Estado desenvolver finalidades políticas (em sentido lato), cruzando-se, assim, as facetas do Estado Contratante e do Estado Regulador. A procura pública pode efetivamente surgir como instrumento de regulação, no quadro da implementação das designadas políticas secundárias ou, como alguns preferem, políticas horizontais v.g. (prossecução de objetivos sociais, ambientais, de proteção das pequenas e médias empresas), isto é, a um uso estratégico da contratação pública.

Perspetivar a contratação pública como um mercado, quer dizer, um local em que se encontram a demanda e a oferta de bens e de serviços, envolve a conjugação de forcas de vários players diretos e indiretos nos procedimentos entre as quais as entidades adjudicantes, as entidades de controlo, as entidades responsáveis pela condução dos procedimentos, os júris, os operadores económicos e os interessados no procedimento. Todos estes intervenientes integram o Sistema Nacional de Contratação Pública (SNCP) que é regulado pela Autoridade Reguladora das Aquisições Públicas (ARAP) cujo estatutos foram aprovados pelo Decreto-Lei nº15/2008 de 8 de maio, e revisto pelo Decreto-Lei n.º55/2015 de 9 de outubro1. Esta regulação da contratação pública envolve a regulação normativa ou regulamentação dos procedimentos de contratação (Concurso Público, Concurso público em duas fases, Concurso Limitado por Prévia Qualificação, Concurso Restrito e ajuste direto) ancorados nos princípios gerais de direito da contratação pública, tais como, do interesse publico, da concorrência, da igualdade, da transparência, da promoção do desenvolvimento económico e social, da economia e eficiência e da programação anual.

Este sistema completo de normas de Direito Administrativo que disciplina a adjudicação de contratos e a escolha dos adjudicatários tem como base o código da contratação pública aprovado pela Lei n. 88/VIII/2015, de 14 de abril, que regula o procedimento pré-contratual, isto é, a parte substantiva, e o Regime Jurídico dos Contratos Administrativos aprovado pelo Decreto-Lei n.50/2015 de 23 de setembro, que disciplina a execução dos contratos. São regras jurídicas de caráter legislativa e administrativa cuja função é de orientar as condutas das entidades adjudicantes e os operadores económicos tendo em vista a concretização da igualdade do acesso à contratação e, já no âmbito do procedimento, da igualdade do tratamento dos concorrentes, isto é, o da igualdade concorrencial.

Aliás é dever do Estado garantir as condições de realização da democracia económica, assegurando, designadamente a igualdade de condições de estabelecimento, atividade e concorrência dos agentes económicos de acordo com a alínea b) do n.º 2 do artigo 90.º da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV)2.

A regulação do mercado da contratação disciplina em termos concretos, o acesso ao mercado, isto é, aos procedimentos de contratação, bem como as condutas dos agentes nesse mercado. O modelo regulatório em vigor em Cabo Verde é de matriz concorrencial e mostra-nos, pois, uma regulação assimétrica do mercado da contratação pública: a regulação incide sobre os protagonistas da oferta, mas revela-se apenas normativa em relação aos protagonistas da procura (as entidades adjudicantes) e quase não existe em relação a outros atores com intervenção relevante no setor.

Entendo, contudo, uma particularidade da atuação da Administração Pública no domínio da contratação pública: trata-se de uma atuação que, embora reconduzida aos modelos típicos das formas de atuação administrativa unilateral e de autoridade (ex: regulamento e ato administrativo), evidencia, em termos reais, um claro recorte económico, próprio de uma atuação de mercado.

De facto, a compra de bens e produtos no mercado constitui, por força da natureza das coisas, um momento de intervenção das entidades adjudicantes no mercado e de contato com os agentes que aí oferecem bens e prestam serviços. Mais: cada procedimento de adjudicação que uma entidade pública inicia corresponde, de certo modo, à criação de um mercado, em que há um determinado bem em disputa para fornecimento (o contrato a celebrar) e um conjunto, mais ou menos amplo, de agentes em competição por fornecer aquele bem.

Neste contexto, afigura-se-nos conveniente destacar o papel do regulador (ARAP) onde este efetua uma regulação na perspetiva do Estado enquanto Contratante, servida por agentes, o qual cumpre o objetivo de esclarecimento e de orientação das condutas das entidades adjudicantes no sentido da adoção das melhores práticas, quer no campo da integridade e da ética na contratação, quer no domínio das melhorias na própria função de compra (qualidade, soluções e atuações ecológicas, inovação, etc.).

A ARAP enquanto instância reguladora da contratação pública em Cabo Verde tem focado a sua atuação na função de regulação de todo o setor económico da contratação pública, quer junto dos operadores económicos, mas também junto das entidades adjudicantes através das Unidades de Gestão das Aquisições (UGA) emitindo diretivas, recomendações, auditorias, aconselhamento, bem como de supervisão, no sentido de se garantir o cumprimento da lei e dos princípios da contratação pública plasmados no CCP.

O caminho para uma verdadeira autonomia da função de regulação da contratação pública já começou a ser percorrido. Importa continuar, com o intuito de chegar mais longe e, sobretudo, de alcançar melhorias económicas e de qualidade na despesa pública, na melhoria do ambiente de negócios, e de uma contratação pública pautada por critérios éticos e de integridade.

*Jurista e especialista em Direito da Contratação Pública

______________________________________________________

1 Cabo Verde a semelhança de muitos países criou a ARAP, seguindo uma tendência mundial como alguns países do nosso continente: L’Agence de Régulation des Marchés Publics (ARMP) dos Camarões, l’Autorité de Régulation des Marchés Publics do Sénégal, l’Autorité Nationale de
Régulation des Marchés Publics (ANRMP) da Costa de Marfim

2 Todo o regime de regulação implica três vertentes essenciais: o estabelecimento de regras; a sua implementação concreta; e a sanção às infrações (Marques, Almeida & Forte,2005)

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1047 de 22 de Dezembro de 2021. 

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Autoria:Manuel Mendes Garcia*,27 dez 2021 7:17

Editado porAndre Amaral  em  27 dez 2021 7:17

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