O Ser acomodável

PorLígia Fonseca,18 mar 2022 11:06

Mariupol, Odessa, Zelensky, neve, crianças, bombas, mísseis, Rússia, Putin, URSS, destruição, parlamentos unidos na aclamação da intervenção vídeo, gestos de coragem individual surpreendentes, tudo isto é um pouco do que assistimos sentados no conforto das nossas casas, enquanto simultaneamente deslizamos o olhar pelas redes sociais e pelos debates sobre esta guerra e suas causas, justificações e compreensões, comparações com outras guerras que aparentemente não nos incomodam tanto apesar de estarem geograficamente mais próximas, todos opinando, com direito inalienável de declarar a sua sentença.

Dias e dias seguidos e só vemos as mesmas imagens de dor, de sofrimento, incredulidade e espanto das vítimas diretas deste conflito armado. De tanto ver essa dor passar nos écrans da tv, parece que já nos anestesiamos e já não nos perturbamos da mesma forma com essa visão do inferno dos outros. A dor e o sofrimento, o desespero e os olhares suplicantes são os mesmos, mas porque se repetem horas e horas a fio, quem os segue sentado no sofá parece que se vai habituando, a ponto de só voltar a verdadeiramente se interessar quando os jornalistas conseguem trazer imagens de atrocidades maiores desse inferno: a criança morta, a maternidade destruída. A busca do pior é quase uma obsessão e o prémio é, não raras vezes, a própria morte. Mas sem o pior, a notícia já não é notícia!

Assim como quando a pandemia começou, os primeiros a morrer tinham nome, eram pessoas, e, mesmo não os conhecendo, fazíamos o luto por eles. Com o tempo, e conforme aumentavam as mortes, as pessoas passaram a ser números. Declaramos a nossa tristeza, é verdade, fazemos homenagens, mas o coletivo já não sofre por elas. Sofrem apenas os seus familiares e amigos próximos.

E aqui soa o sino de alerta: as imagens da guerra repetidas constantemente não se podem tornar suportáveis aos nossos corações. Precisamos de continuar a sofrer, a chorar, a nos indignar, a perder o sono, para que a guerra que os outros estão a viver não se torne banal para nós. Só assim esse mal não prosperará.

2. As consequências económicas desta guerra entre dois países da Europa estendem-se por todo lado e Cabo Verde, inevitavelmente, é um dos que mais sofre.

As análises económicas têm sido feitas por analistas nacionais e internacionais. O cenário não parece bom, ainda que hoje tenha ouvido um especialista a dizer que nos desafios nascem oportunidades. Não há dúvidas de que isso é verdade. É só vermos as empresas que lucraram, de uma forma até escandalosa, ouso eu dizer, com a pandemia. A Amazon, a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), a Alphabet (Google), a Apple e a Microsoft alcançaram um lucro de 279.560 milhões de euros em 2021.

A desgraça de muitos costuma ser uma boa oportunidade para alguns poucos. Mas quando essa desgraça consiste em aumentar o número de pessoas em pobreza extrema, quando vai adiar a erradicação da fome, quando põe em causa o bem-estar mínimo de populações de todo o mundo, a pergunta que faço é esta: não tem a comunidade das nações mecanismos para impedir que as regras puras da procura e oferta conduzam a humanidade para uma situação tão insustentável? Não é possível adotar regras internacionais que impeçam este aumento desenfreado do preço do combustível, com todas as suas consequências?

As soluções que oiço para atenuar entre nós as consequências do custo deste aumento do preço do combustível passam pela subsidiação do Estado relativamente a certos produtos de primeira necessidade. Mas por quanto tempo é uma solução destas suportável para um pequeno estado como o nosso? Por muita boa gestão que façamos dos parcos recursos que temos, estamos sempre dependentes das decisões internacionais que afetam o preço dos combustíveis.

Num mundo em que os homens e mulheres têm conseguido feitos excecionais, não se consegue encontrar um acordo mundial para mitigar razoavelmente o impacto da guerra na vida dos Povos?

A economia, seja ela mundial, nacional ou familiar, tem de ser formatada pela ética, pela busca permanente do bem comum da humanidade. Não me parece admissível que Povos inteiros sejam arrastados para a pobreza (não só do pão, mas também da liberdade) por fatores sobre os quais não têm nenhum poder de intervenção.

Em resumo, entendo que tem de ser possível e deve-se buscar uma concertação que controle o preço e a disponibilidade mundial do petróleo e do gás de forma a que a população mundial não veja o seu bem-estar humano posto em causa.

E não podemos esquecer que nesta situação, como em quase todas as situações difíceis que o mundo atravessa, as mulheres acabam por sofrer ainda mais, perdendo muitas os poucos rendimentos que conseguem com a suas atividades informais.

Nestes dias, constantemente me recordo da sensação de proteção e esperança que senti na primeira e única vez em que estive numa sessão plenária da Assembleia Geral das Nações Unidas com a presença dos grandes líderes mundiais. Ainda não tinha surgido a pandemia, e a sala estava quase totalmente preenchida pelos chefes de Estado e de Governo das Nações do mundo. Senti que nesse lugar seria, sim, possível evitar outra guerra mundial. Infelizmente a pandemia retirou a força dessa reunião magna, pois os líderes grandes e pequenos deixaram de se encontrar olhos nos olhos, todos no mesmo espaço, para discutirem os problemas.

Mas recuso-me a perder a esperança e continuo a querer acreditar que no âmbito dos propósitos declarados no artigo primeiro da Carta das Nações Unidas, podemos continuar a exigir que a ONU trabalhe no sentido de conseguir um acordo internacional capaz de controlar o aumento brutal do preço do petróleo e do gás, evitando assim os efeitos catastróficos a nível social, cultural, humanitário, para todos os Povos sem distinção.

Praia, 17 de março de 2022

Lígia Dias Fonseca

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Opinião

Autoria:Lígia Fonseca,18 mar 2022 11:06

Editado porAndre Amaral  em  18 mar 2022 11:06

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