Loucura é querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual! - Albert Einstein (1879 – 1955)
As últimas notícias sobre as observações do Relatório do Departamento de Estado norte-americano sobre os Direitos Humanos em Cabo Verde e os casos de ataques contra agentes da Polícia Nacional (PN) estimularam, em parte, esta minha reflexão. Aparentemente temáticas distintas, pese embora recorrentes, de entre alguma desatenção às possíveis ligações que poderão existir na subtileza da relação causa efeitos e problema solução, comuns, prenderam a minha atenção, não os factos das notícias em si, mas a ausência de um debate assertivo em relação às medidas de políticas para controlar a situação e até uma certa indiferença sobre o segundo tema.
Além de que os problemas teimam em persistir e com uma certa tendência para a complexificação e degradação da relativa condição de paz e segurança, do resto, as observações não trouxeram novidades circunstanciadas, nem mesmo sobre este meu entendimento de que se trata de uma situação que a nossa democracia precisa encarar. Não que eu mesma já não havia retratado o tema, mormente alertado sobre os respetivos perigos, decidi retomar o assunto, quebrando o meu silêncio sabático, ainda que compromissos outros, não me permitem, por agora, um regresso regular às habituais publicações de outrora.
As violências, o controlo da atuação das forças e serviços de segurança constituem preocupações das perspetivas intencionais globais, regionais e nacionais para a prevenção da paz/segurança, desenvolvimento, direitos humanos e humanitarismo, questões, que requerem uma governance capaz de produzir instituições eficazes, que têm em consideração as articulações necessárias de diferentes atores, internos e externos, visando modelos flexíveis que produzem resultados perenes e capazes de granjear a confiança da comunidade e promover a aceleração da implementação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS – 2030).
Quando refiro-me às violências no plural, faço-o de forma intencional, certo da sua presença e natureza social e criminalizada nas diversas formas como ela se manifesta entre nós – contra mulher, contra criança, contra património e contra as pessoas de uma forma geral – mas também no olhar crítico particular, como a mesma acontece em possíveis excessos que possam ocorrer no uso de meios coercivos por parte dos agentes das forças e serviços de segurança e nos contornos subtis, de ataques propositados, aos agentes das forças e serviços de segurança que igualmente tem acontecido.
De 2012 a esta data, tem havido um aumento crescente de casos de ataque aos agentes de autoridades, em assaltos às suas residências, emboscadas a caminho de ou para o trabalho, ou em operações de segurança. Pormenores sensíveis evolvidos têm fugido uma atenção cuidada, inclusive por parte das entidades públicas. Infelizmente, a agenda mediática tem dado espaços desproporcionais entre os supostos casos de excesso policial contra cidadãos e aos sucessivos casos de ataques a agentes e seus familiares, alguns com contornos brutais. A PN só em 2016 passou a incorporar os dados relativos a estes factos na sua estatística e o Ministério Público (MP), apesar de nos últimos dois anos, passar a destacar nos seus relatórios as queixas-crimes contra agentes policiais, não faz nenhum realce particular aos crimes contra os elementos das forças e serviços de segurança, sendo este um problema também notório.
A gravidade de certos casos não pode ser encarrada como sendo mera questões cotidianas. O grau de sofisticação em torno dos mesmos inclui móbil diversos, em certas circunstâncias, visando o agente em específico, por causa de uma atuação qualquer, noutras, devidos aos interesses públicos que este persegue, incluindo a cobiça e tentativa de roubo da arma que utiliza. O modus operandi envolve preparações sofisticados, meios diversificados, com observações e ações cuidadosamente planeadas, de longe superior a qualquer modo de assalto contra um outro individuo.
Para todo os efeitos, estes atos são prelúdios de ataques aos poderes públicos instituídos, onde a própria comunidade, muitas vezes, cala e esconde-se evitando apoiar a polícia que a protege. Quando não por medo de represália, por motivo do efeito do conceito contestado como a segurança é ainda vista, beneficiando com o seu silêncio, em qualquer das posições, o delinquente e a criminalidade, contraditoriamente, antes da demanda do direito da segurança que ela contesta do Estado em favor próprio.
Uma sociedade que age assim, é uma sociedade que está perdendo aos poucos a crença em valores comuns, suscetíveis de garantir a paz social positiva, necessária ao desenvolvimento e a salvaguarda dos direitos humanos, como base fundamental da garantia da dignidade das pessoas. Sendo de interesse em qualquer sociedade democrática, cabe aos poderes públicos aperceberem-se o que está a passar, agir permanentemente para identificar o problema e corrigir o que não está certo. A miude, na ausência de uma leitura justa, o próprio sentido corporativista poderá estar a gerar confrontos pessoalizados, por parte dos agentes do Estado, o que merece ser igualmente acautelado.
As análises relativas à situação dos direitos humanos apresentados, referentes à Cabo Verde em 2021, no documento do Departamento de Estado norte-americano expressam “relatos credíveis” de abusos cometidos por parte de forças de segurança, casos de abusos de direitos humanos ou o envolvimento dos agentes em casos denunciados de corrupção e aumentos significativos de queixas-crime contra agentes policiais. Outras referências internas e os sucessivos inquéritos nacionais sobre o índice da paz segurança e governança, atenta igualmente às próprias estatísticas de criminalidade (CSMMP, 2012-2021), no essencial, alinham pelas mesmas evidências da degradação da qualidade, apontando a ineficiência no controlo do sentimento de insegurança, a queda no índice de confiança e aumento de perceção das incidências da corrupção (AFROSONDAGEM; 2005- 2020).
De ponto de vista de conformidade de tais incidências, nem sempre as críticas têm apontado soluções para desafios chaves que vem sendo ignorados. Nesse sentido, os princípios constitucionais que conformam os limites da atuação das entidades policiais e seus agentes na exclusividade do uso legal do poder coercivo do Estado que a polícia é depositária, requerem medidas democráticas para o controlo e salvaguarda da discricionariedade no uso do referido poder. Estas preocupações instigam instâncias administrativas autónomas de controlo, perícias e cautelas na investigação e aferição da verdade dos factos, para se alcançar uma ajustiça qualitativa e comutativa, distanciando-se, inclusive, de alguns vícios ‘desconstrutivistas’ prevalecentes, em relação à desconfiança percetível, ou da segurança que se faz, ou dos seus agentes.
Infelizmente, nota-se que a própria justiça, ainda não é ciosa de que os excessos de uso de força nas autuações policiais não são apanágios das instituições, ou então não estão atentas, quando a questão se refere aos policiais, no grau que as sofisticações das práticas de violências vêm adquirindo entre nós. No obstante, possíveis de acontecerem, os mesmos também acontecem um pouco, por todo mundo. Entretanto, as causas dos excessos de uso de força nas autuações policiais, contrariamente ao que algumas leituras fáceis querem fazer crer, não se justifica apenas qualidade da formação dos agentes, já que assentes, mesmo parecendo contraditório, a maioria dos profissionais da classe revê na garantia do direito à segurança, um valor indispensável à defesa dos direitos humanos, sendo estes a principal força motivacional para a escolha da própria profissão.
Contudo, sendo o Estado sempre responsáveis pelos atos lesivos das suas instituições e seus agentes quando subjugam os direitos humanos, as práticas recorrentes de lavar as mãos, sejam das lideranças políticas, sejam das que manejam o controlo hierárquico, podem servir para alguma satisfação, porém, não o controlo da situação, como é desejável em democracia. Em regime democrático, esse controlo eficiente deve ser sistemático e perene e as boas referencias já apresentam instrumentos adequados para o efeito. A desconfiança hoje instalada sobre a segurança que se faz e sobre os seus agentes, assim exige, ao contrário dos processos ‘piláticos’, muitas vezes justificados através de longos comunicados, alguns realizados no seguimento de relatórios publicados ou manifestações pontuais, a propósito de um caso trágico.
De entre alguns desafios já identificados noutros campos, desde 2005, que com a criação da PN, foi ignorado por completo, a Inspeção Geral da Polícia, uma unidade orgânica antes existente na Polícia de Ordem Pública, situação que constitui até hoje, um retrocesso do sistema. Após isso, o controlo hierárquico e o político cristalizaram-se num sistema absolutista, ela própria, no centro de algumas críticas. Os papeis reservados ao controlo judicial externo, com a morosidade da justiça existente, e o controlo hierárquico das polícias, dada a cultura institucional associada ao facto de ainda se estar longe do propalado modelo de relação de proximidade, produziram um défice do controlo social relacional sobre o tratamento de possíveis desvios e contribuíram para um disparar de suspeições, por via de lamentos, tão manipuláveis, quanto factíveis e impactantes.
Em apreciação, a própria Inspeção Geral da Administração Interna criada, há mais de dez anos, na dependência orgânica do Gabinete do Ministro da Administração Interna, é limitada no controlo autónomo especializado que deveria ser. Por não se consubstanciar numa entidade própria, não possuir um estatuto ou recursos diretos, e consequentemente, autonomia programática, a mesma torna-se ineficaz, pesando a respeito, o facto de depender fortemente do despacho da sua tutela.
Os controlos ativos não têm gerados dinâmicas próprias de transformações democráticas saudáveis, tornando-se limitadas as suas capacidades para identificar as falhas possíveis em soluções políticas, os desvios e as suas causas que a permitem emitir alertas precoces de riscos de violações de direitos dos cidadãos e antecipar situações críticas de desvios que possam estar na base das apreciações negativas registadas. Em face às persistentes apreciações negativas e a própria queda da confiança nas instituições policiais, sobretudo numa altura, em que já se fala na efetivação das polícias municipais, não pensar numa entidade autónoma de inspeção das forças e serviços policiais poderá consubstanciar-se em desatenção e numa fragilidade democrática a se ter em consideração.
No concernente, a ideia de que as inspeções internas, possam ser substituídas pelos controlos hierárquicos tradicionais afunda no mesmo erro. As estruturas internas de inspeção, são essenciais para o controlo das forças de segurança e representam uma espécie de check and balance do sistema do controlo. Não só de ponto de vista de observação e implementação do plano de integridade e acompanhamento dos processos internos de controlo de qualidade, as inspeções internas atuam como gestores de processo de melhorias, como ainda, instâncias técnicas de implementação de sugestões de melhorias contínuas, referentes às não conformidades ligeiras, ditadas pelas auditorias e ações externas, relativas aos processos específicos das auditorias programadas e das sem avisos prévias, sem contar, o processamento e preservação de evidências credíveis, de que determinados procedimentos são efetivamente realizados pelos controlos hierárquicos. Têm custos? Claro que sim. Qual o preço que se está a pagar por não existir? Por ignorância ou comodidade, minguem quer calcular.
Enfim, as falhas, as desconfianças alertadas, se existem, elas não são frutos da malícia peçonhenta do acaso e nem se resolvem espontaneamente. No caso, “a mulher de Cezar não basta ser séria”. Faltam às instituições unidades orgânicas que garantem, por um lado, que os controlos de qualidades sejam efetivos, operáveis e transparentes, por outro, que sejam capazes de gerar o desenvolvimento da eficiência e da confiança da comunidade e dos outros atores internos e externos interessados. Tal confiança seria determinante, para estabelecer que a conduta imprópria do uso da força policial ou outros desvios às normas, não fossem considerados, se não, uma exceção a regra, diante do conceito contestado como a segurança está sendo observada pelas perceções negativas, mesmo que admitindo através de ações corretivas justas que nem todas as perceções aferidas sejam infundadas, em proteção da imagem própria e dos direitos humanos de todos.
Porém, não basta criar as inspeções internas ou autonomizar a IGAI. O mais importante éoperacionalizá-las, dotando-as de normas, procedimentos e meios, sendo fundamental uma liderança capaz e comprometida com a qualidade e que saiba o que é a segurança e como a segurança se faz em democracia. No final, até ao próximo relatório, a “loucura é querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual”.