Silvino de Oliveira Lima - Engenheiro Civil – antigo Ministro das Obras Públicas
Silvino de Oliveira Lima - Engenheiro Civil – antigo Ministro das Obras Públicas

Eis que mais um ano se fecha no calendário histórico, 2022, já 47 afastados da data da independência de Cabo Verde, primeira pedra de uma edificação complexa, início de uma alquimia inédita visando a realização do sonho que permitiu o dia: afastar de vez o pesadelo de massivos corpos a apagar; perpetuar a chama do 5 de julho; tornar o quotidiano uma rotina prática; o rótulo de subproduto da construção de impérios, um símbolo de resistência; fazer da condição alforra uma soberania de facto.

Passado esse tempo, talvez seja ainda demasiado cedo para avaliar o que já se permitiu alcançar com a virtude da `nova ciência´. Seja como for, quando se olha para trás no modo ver para crer, longe ainda a perspetiva doirada, será positivo observar que estar na situação atual, onde efetivamente se está, já é bastante para perceber o envolvimento de muita e muita prata. De certo modo, convenha-se, está aí o raro bem. É um facto. Outro já seria a velha história, egos conformados com o fruto colhido, quando não, ratice sob vigilância.

Certo é que se obriga radical a transformação da base que suporta a construção. Percebe-se: por um lado, evidência a desaconselhar perda de tempo na tentativa de alcançar níveis significativos de desenvolvimento apostados no ecossistema que arruína pela ausência de chuva e debilidade crescente das fontes hídricas naturais; por outro, atrasa a estruturação da alternativa baseada nas novas fontes energética e aquífera, acentua o desgaste das atividades, umas roubando espaço às outras e a contribuir para a crescente piora das perspetivas. Neste particular, exemplo mais eloquente acontece nos últimos 70 anos na freguesia de Nossa Senhora do Rosário em Santo Antão: importantes quintais nos arredores da antiga vila, outrora fontes privilegiadas de exportação de banana para Portugal – décadas 50 e 60 – foram totalmente engolidos pela urbanização, um fenómeno que sob tamanha indiferença transborda para o interior dos vales, a seca agravando as consequências nos regadios a montante fazendo-os sequeiro. Logo, uma complicação extrema, um alerta para outras regiões agrícolas do país para despertar a reflexão sobre o mapa económico que se quer construir em sintonia com os grandes objetivos do desenvolvimento.

Seria então desejável não perder tempo na procura de melhor forma de utilizar os recursos para prevenir e não ter de suportar os pesados custos de uma evolução que ponha em risco o velho sistema, o que releva a questão de espaço para corresponder às necessidades. Já por isso, deixou-se implícito noutras ocasiões que na expansão do universo de atividades para satisfazer as exigências do processo o défice de espaço só seria um complicado problema na ausência de clareza de visão para aproveitar de forma sustentada o potencial das formações rochosas nas periferias marítimas de algumas ilhas tendo em vista abrir grandes plataformas para a instalação segura de parques industriais, energéticos, habitacionais, grandes projetos para atrair o capital estrangeiro, diversificar a economia, minorar os desequilíbrios, as desigualdades sociais. Mal seria então se Cabo Verde se excluísse dessa vantagem. Seja como for, já é fortuna as circunstâncias que pressionam nesse sentido, a emergência hídrica e energética obrigando os palcos da nova economia a se estabelecer junto das zonas costeiras, sede da fonte inesgotável da produção de água, solução de outras questões não menos estratégicas: cada ilha sua cota mínima para a segurança alimentar, todas se tornando agrícolas, cada atividade o seu espaço, contínua expansão da agricultura uma condição.

Porém, para lá chegar, a consistência dos passos é essencial, o interior montanhoso perdendo intervenção direta mas ganhando indiretamente na capacidade de produção e geração de emprego, fruto não só da eventual redução da carga sobre o meio-ambiente, mas também do impacto da intervenção nas zonas pertinentes das periferias costeiras. Lógico. Se no interior de algumas ilhas a pressão das circunstâncias é tanta que leva as atividades a resistir até à exaustão, sinais vendo-se no despovoamento e disfunção na relação custo-benefício, só há uma escolha: ou a situação atual se deixe prosseguir com a migração pressionando presumíveis zonas de conforto, e há o risco de agravamento das atuais bolsas de miséria; ou simplesmente entra-se sem mais demora para a etapa da construção da economia real sustentável e chega-se a um tempo de verbo coerente, credível, mobilizador. Evidentemente, só a segunda colhe sob a influência dum quadrilátero como este: audácia, vontade política, imaginação criativa, segurança das metas pressentida por vasta margem da sociedade.

Para melhor esclarecimento, veja-se os dois exemplos seguintes no modo pergunta resposta, um, sobre S. Vicente, outro, o tal caso Santo Antão.

Primeiro: estará S. Vicente, lá no seu propósito expresso de levantar ilha, a utilizar todo um baralho para acertar nas melhores alavancas ou o patamar a que quer chegar não é afinal tão elevado para jogar com todas as cartas? Este, sendo o caso, estaria obviamente a contrariar o propósito nacional de fazer do arquipélago um país desenvolvido, o que já recomendaria o benefício da dúvida ainda que presumindo estar fora da mesa uma que é imprescindível, carta orográfica, ferramenta essencial para redesenhar a arquitetura natural, não só construindo nas rochas da orla marítima da zona sul vastíssimas plataformas para satisfazer as exigências do desenvolvimento, mas ainda a correção do péssimo visual observado do mar. Efetivamente, que seria melhor para a ilha, ganhar peso com a saturação dos velhos espaços através de pequenos projetos de duvidoso impacto inviabilizando o propósito de elevação, ou retirar massa rochosa lá onde é pertinente naquela serrania e tenha condições para produzir o dito efeito? A resposta é evidente e só uma. Porém, a dinâmica ainda exige não se deixar apanhar de mãos a abanar, sequer sem um projeto ou ideia de projeto bem avantajado para interessar o grande capital que possa, eventualmente, vir a surpreender batendo à porta. Ora, desafortunadamente, não consta que S. Vicente esteja isenta de cair no desconforto de uma tal situação. Certeza é a massa cinzenta que aí existe capaz de fazer da orografia uma arquitetura que induza a atratividade. Porém, não basta, é preciso mobilizá-la para o efeito. Ou será necessário um catalisador para acelerar a realização do grande sonho? O tempo esclarecerá, todavia, tempo razoabilidade para evitar mais décadas de atraso.

Segundo: já no referido caso da vizinha ilha, muitas décadas observação fazem prever uma situação que, infelizmente, pode fugir ao controlo, como já está a fugir de facto, risco de surpreender o país com grave perspetiva de desastre humano e patrimonial. É que numa região tão exposta às ameaças dos fenómenos climáticos globais, muito do que aí se faz, em termos estruturais, não previne, agrava a exposição deixando pouca margem para uma solução de curto médio prazo. Já a longo prazo, contrariamente, havendo forte determinação e vontade política para rever as prioridades e colocar a prevenção no centro das atenções, não só se evita recuar no tempo, como ainda consegue-se a recolocação do atual quadro nos carris mais apropriados. Haverá melhor solução que aproveitar toda a encosta rochosa entre Ribeira Grande e Ponta do Sol aplicando-lhe o receituário sugerido para S. Vicente? Não havendo, valerá esta, a região ganha, as gerações agradecem. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1074 de 29 de Junho de 2022.

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