E de facto, de forma empírica, sem recurso a indicadores da sustentabilidade do IDE, o sucesso desta politica pública, nos últimos 20 anos, é notável.
Mas a radical transformação económica e social das ilhas do Sal e da Boa Vista, em polos mundiais de turismo balnear, é parcialmente explicada pelo forte investimento na imobiliária turísticas e à operacionalização em larga escala de operações de empresas multinacionais de gestão de destino, como a TUI Group, que lidera a cadeia e fomenta o destino através do modelo de negócio end-to-end.
Neste ponto, creio ser importante compreender que o modelo de negócio da TUI, também conhecido como “all-inclusive”, é bem mais abrangente, pois pressupõe integrações horizontais e verticais, e a simbiose de todas as atividades empresarias em torno da demanda e gestão do fluxo de turistas1. A TUI é um “mamute” completamente digital e invisível além do fluxo turístico e o fluxo financeiro.
A TUI é uma corporação global que fatura mais de 20 biliões de Euros por ano e já demonstra ter forte interesse em Cabo Verde, e por isso bem aumentando gradualmente o seu poder de barganha através da gestão de hotéis, domínio dos serviços de terra e de uma tímida expansão das operações para as restantes ilhas2.
De outro modo, é preciso considerar que a forte atração do IDE para as ilhas do Sal e da Boa Vista representa também forte investimento público e no caso de Cabo Verde o Governo teve que investir em estradas, avenidas, no aeroporto da Boa Vista, sistemas de produção de água e energia e replicar rapidamente diversos tipos de infraestruturas económicas e serviços necessários para dar vazão à escala de operações turísticas atingiu o pico anual 800.000 turistas em 2019 e oscila entre 8.000 a 20.000 turistas por dia entre a época baixa e a época alta .
Como contrapartida, a economia de Cabo Verde beneficia-se diretamente com o fluxo de turistas nos aeroportos, com a cobrança de todo o tipo de taxas e serviços que envolvem a operação aérea e com a cobrança da taxa de dormida que por sua vez alimenta o Fundo do Turismo.
Através do fundo o Governo financia o desenvolvimento um pouco por todo o país com a qualificação das localidades, capacitação dos operadores, investimento em infraestruturas, o que é claramente insuficiente perante o que é necessário fazer para transformar Cabo Verde num destino competitivo, diversificado e sustentável.
É facto que a rápida expansão do turismo no Sal e a Boa Vista, ilhas com baixa intensidade populacional, com ecossistemas vulneráveis, vem também acompanhado de um pesado custo social e ambiental que resulta do despreparo das autoridades locais e da incapacidade da população local e dos negócios de acompanhar a dinâmica do turismo e de tomarem medidas atempadas, em cada época (season), para garantir uma relação equilibrada (win-win) entre as partes interessadas.
Claramente, o Governo sempre esteve a reboque do Turismo e apesar da forte resposta em termos de infraestruturas, em termos de transporte, o país ainda é descontinuo e estamos ainda longe da possibilidade de instalação de um sistema intermodal para facilitar o fluxo de pessoas e bens de forma eficiente. Além disso, o conjunto de problemas sociais, ambientais e económicos, gerados pelas externalidades do turismo, evidenciam a necessidade, diria até a urgência, de se rever o regime de investimentos existente em Cabo Verde.
De outro modo, a única avaliação que existe sobre a qualidade do IDE em Cabo Verde é o Investment Policy Review IPR 2018, da UNCTAD, que recomendou ao Governo o abandono gradual do uso de contratos de investimento e a concessão de incentivos fiscais e não fiscais não com base em promessa de investimento, mas sim com base em critérios pré-definidos de performance, definição de tempo e sujeito a procedimentos de avaliação de custo e benefícios dos incentivos.
A UNCTAD realçou no sumário executivo do IPR 2018 que:
“o regime fiscal e a proliferação de incentivos existentes, por meio de contratos de investimento para grandes investimentos (convenções de estabelecimento), criaram discriminação de factoa favor de grandes empresas estrangeiras, e resultam em obstáculos para a administração tributária e alfandegária.”
A UNCTAD alertou também ao governo para o volume significativo de reformas a serem implementadas e o pesado custo dos incentivos fiscais que limitam significativamente a capacidade das autoridades de cobrar impostos, perante a complexidade de gerir o atual sistema fiscal e gerir os incentivos de forma democrática entre micro, pequenas e grandes empresas.
Efetivamente, em 20 anos, a média anual de IDE em Cabo Verde ronda os €100 milhões anuais com picos de €250 milhões e baixas em torno de €50 milhões e o stock acumulado do investimento realizado é de cerca de €2.000 milhões. Para o público é importante perceber que o volume do investimento contratado é um indicador perene e digamos relevante para análise de intenções concretas de investimentos por materializar.
Importa ter em conta que o ambiente de negócio e a facilidade para realização de transações são determinantes para a concretização do investimento, pelo que, de facto não se compreende o anúncio recente da Agência de Investimentos da assinatura de mais contratos de investimentos no montante de €4.000 milhões3 quando esta é claramente uma velha receita que enfraquece o Estado em beneficio da especulação intensiva.
Estas questões são factuais e qualquer cidadão com responsabilidades politicas, empresarias, ou académicas devia estar preocupado com o Commonwealth4 e com as tendências que minam ou fortalecem o nosso futuro comum. Mas estas questões precisam de alargado consenso, e consciência do impacto da política de investimento que temos.
Sem consenso entre as forças políticas e o Governo muito dificilmente se chegará a bom porto para se fazer uma reforma5 que viabilize quer a formalização dos informais, quer a valorização do investimento local e de médio porte, bem como favoreça a integração das cadeias de valor e abastecimento dos resorts com produtos Made in Cabo Verde.
Apesar de fundamentadas na verdade dos números, em Cabo Verde, este tipo de questões ainda são tratadas como tabu e evitadas ao máximo, principalmente por quem devia zelar pela qualidade do IDE.
Mas o Rei vai nú: a dupla crise instalada, da pandemia e da guerra na Ucrânia evidenciam a necessidade de melhor efetividade das Politicas Públicas de investimento e maior sustentabilidade dos catalisadores do desenvolvimento como o IDE.
Notem, as crises vão sempre existir e a natureza arquipelágica do país impõe-nos uma elevada exposição aos choques externos, consequentemente, importa recuperar algumas receitas do passado e desenvolver boas práticas para criar resiliência e enfrentar todas as crises.
Fontes:
- Investment Policy Review 2018 – UNCTAD
- World Investment Report 2016 – 2022 – UNCTAC
- Estatística do IDE – 1999 a 2022 – BCV
- Estatísticas de Remessas – 2002 a 2022 – BCV
- TUI’s Group Management Report – 2017 a 2021
- www.cvtradeinvest.com
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- Este modelo permite à TUI manter o controle granular dos riscos e dos financiamentos envolvidos.
- O que é evidente também é a oferta de pacotes férias de 5-7 noites para Cabo Verde, com tudo incluído, em torno de €1.000 por pessoa e a magnitude do negócio que a TUI mantém em Cabo Verde.
- Entre 2000 e 2016 o Governo assinou 45 contratos de investimento que totalizaram €10 biliões
- Comunidade e bem comum
- A reforma do quadro legal de investimentos e do próprio quadro fiscal implicam na revisão de uma teia de leis que integram o regime do comércio de bens e serviços, e as políticas de desenvolvimento industrial e sectorial.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1076 de 13 de Julho de 2022.