O mundo está perante a possibilidade de uma recessão global no próximo ano na sequencia de choques sucessivos incluindo a pandemia, a guerra na Ucrânia e a crise energética acompanhados de pressão inflacionária e de perturbações graves nas cadeias de abastecimento. Não será com fórmulas recicladas, com a politiquice habitual e com o descaso na utilização dos recursos existentes ou disponibilizados que se irá enfrentar com sucesso a situação actual e a que se desenha nos próximos tempos.
A crise expôs todas as actuais fragilidades. Cabe agora reconhecê- las e, seguindo as recomendações do FMI, fazer diferente, ciente que a economia terá de funcionar num outro quadro, mais resistente a choques e mais solidário e inclusivo. As pessoas terão que ser capacitadas para responder a outros desafios e estarem na posição de aproveitar novas oportunidades. O impacto já visivelmente sentido das alterações climáticas terá que levar a outros comportamentos na relação com o ambiente, mudanças nos padrões de consumo e a uma acelerada transição para as energias renováveis. A urgência em fazer isso é relembrada todos os dias pelo crescente aumento dos preços energéticos e dos alimentos, pela inflação que se mantém alta e o abrandamento já notório das principais economias do mundo. Ninguém deve se descuidar levado por optimismos fantasiosos do tipo “retoma está aí mesmo à porta”.
Agrava essa urgência o facto destas crises sucessivas terem acontecido num quadro de crise da democracia de há uma década atrás. Na sequência da crise financeira de 2007/08 instalou-se um mal-estar nas democracias tanto maduras como mais jovens alimentado pelo aumento das desigualdades sociais e pela percepção de falta de representatividade nas instituições e de diminuição nacional de capacidade decisória. Em resumo, desenvolveu-se o sentimento que a globalização tinha ido longe de mais e que em nome de maior eficiência da economia uma elite enriquecia ainda mais enquanto se perdiam empregos bem pagos emagrecendo a classe média e para os mais novos só sobravam os salários baixos dos empregos no sector de serviços. Em acréscimo a questão das migrações que, entretanto, surgiu foi mais uma acha na fogueira da frustração e do ressentimento que em devido tempo foi instrumentalizada por certas forças políticas fragilizando ainda mais as democracias com questões identitárias polarizantes.
O problema que se coloca é saber como ultrapassar as várias crises que em simultâneo estão a afectar os diferentes países e em particular as democracias. Facto é que com a invasão da Ucrânia pela Rússia e a reacção do Ocidente com as sanções abrangentes em termos económicos, financeiros e tecnológicos a globalização de antes já não mais existe. A procura de eficiência foi substituída pela resiliência, as cadeias de abastecimento estão a ser refeitas e programas de revitalização da manufactura estão a ser realizadas no quadro das chamadas políticas industriais. Conjectura-se que blocos económicos de um mundo multipolar poderão estar no horizonte e das rivalidades entre eles vai-se ter um mundo de dinheiro mais caro, crescimento mais raso e inflação elevada. Os tempos de abundância, referidos pelo presidente francês Macron, estariam a chegar ao fim.
Para vários economistas como por exemplo Dani Rodrik as novas “políticas industriais”, encetadas por vários países para avivar a manufactura, criar empregos qualificados e bem pagos com o objectivo entre vários outros de diminuir a desigualdade e a exclusão social, irão se mostrar insuficientes. Segundo esse economista, numa publicação recente no quadro do projecto Hamilton, a importância do sector de serviços para a produtividade e competitividade da economia é cada vez maior e com a actual automação e robotização do sector industrial não há como regressar aos tempos anteriores particularmente no que respeita à criação de um grande número de postos de trabalho nos moldes do antigamente. A solução que ele propõe é uma política industrial para o sector de serviços que também se prima pelo aumento da produtividade e da qualidade e seja capaz de sustentar bons empregos.
Seria interessante verificar até que ponto essa proposta de política industrial para o sector de serviços feita pelo economista Dani Rodrik poderia aplicar-se a países que, com desenvolvimento tardio, perderam a oportunidade da industrialização para criar empregos em larga escala. Ou a países como Cabo Verde que praticamente têm que, em termos da estrutura produtiva e de aplicação de mão-de-obra, dar o salto diretamente do sector primário para o sector de serviços. Talvez resulte a abordagem que faz no sentido da formalização do sector, incluindo capacitação das pessoas, organização de carreiras, estruturação do mercado de prestação de serviços e coordenação para criação de externalidades positivas com vista ao aumento da produtividade e â melhoria da qualidade dos serviços. Poderia ser o caminho para o desenvolvimento de cuidados de saúde abrangentes e de qualidade que viessem a articular com o turismo, em particular com o residencial e o dirigido aos mais velhos. Aplicar-se-ia a outras áreas de serviços que também se suportam da digitalização e gestão de dados e mesmo ao sector das energias renováveis com as suas necessidades de instalação, manutenção e monotorização. Aumentando a produtividade dos serviços prestados já se tinha a base para salários mais altos.
De qualquer forma para os países em desenvolvimento como é o caso de Cabo Verde a actual crise coloca particulares desafios. Além de enfrentar os altos preços de energia e alimentos, os constrangimentos no abastecimento e a inflação a subir em flecha têm agora de lidar com a alta do dólar e o seu impacto no custo das importações, no défice orçamental e na dívida pública. A tornar ainda pior a situação vem agora o risco de recessão global provocado pelo aumento quase generalizado da taxa de juros numa tentativa de controlo da inflação nos países desenvolvidos. Mesmo que que não venha a acontecer, o abrandamento da economia que vai provocar, agravado pelo facto de todas as grandes economias, incluindo a China, registarem taxas baixas de crescimento, trará grandes problemas aos países em desenvolvimento ainda não refeitos dos efeitos da pandemia da covid-19.
A recomendação que vem do FMI para a travessia destes conturbados tempos é para contenção no défice orçamental e no montante da dívida pública. Nesse sentido é de se apoiar estritamente os mais necessitados, cortar nas despesas e melhorar na cobrança de impostos e certificar- -se que a política fiscal está em sintonia com a política monetária. A importância de se seguir por esse caminho ficou dramaticamente demonstrado no Reino Unido com a reversão sob pressão dos mercados da política fiscal da nova primeira-ministra que iria conduzir ao aumento do défice e da dívida pública. Demonstraram o seu descontentamento com a depreciação da libra esterlina em relação ao dólar.
Em Cabo Verde, onde a discussão da política orçamental fica demasiadas vezes pelo básico de acusações de abandono e descriminação e por propostas de despesa movidas por razões eleitoralistas, os tempos de rigor deveriam levar a uma outra abordagem. Aliás, se há algo visível a olho nu são os gastos excessivos feitos pela máquina do Estado. Nestes tempos de rigor seria um grande serviço feito ao país se chegassem a acordo no controlo das despesas e na diminuição das ineficiências. O mesmo se acontecesse na melhoria da cobrança e no alargamento da base tributária. Infelizmente o eleitoralismo que domina a política cabo- -verdiana provavelmente deixará passar mais esta oportunidade para procurar ter um aparelho de Estado enxuto, eficiente e competente como bem o país precisa para se desenvolver e servir bem a todos os cidadãos.
Humberto Cardoso
Texto publicado originalmente na edição nº1090 do Expresso das Ilhas de 19 de Outubro