Foco, um ano depois

PorHumberto Cardoso, Director,14 nov 2022 8:14

​Foi há precisamente um ano a tomada de posse do Presidente da República José Maria Neves.

 Com esse acto terminava o ciclo eleitoral que se tinha iniciado em Outubro de 2020 com as eleições autárquicas e depois continuado nas legislativas de Abril de 2021. À frente, Cabo Verde poderia contar com três anos sem pleito eleitoral, o que provavelmente viria a jeito. Praticamente todo o período eleitoral verificou-se durante a pandemia da covid-19 e o país precisaria de uma certa acalmia nas disputas partidárias para melhor poder focar em como trazer de volta a economia depois de uma violenta contracção de quase 15% do PIB e em como construir bases para resistir futuros choques. Infelizmente não foi isso que aconteceu apesar da invasão da Ucrânia pela Rússia e do seu impacto global a vários níveis terem vindo relembrar a urgência em se obter convergências em questões fundamentais e em conseguir mobilizar vontades para a consecução dos grandes objectivos do desenvolvimento.

O Presidente da República foi eleito por uma maioria confortável e, apesar de ser originariamente de uma área política adversária da do governo, não se descortinava, à partida, que poderiam surgir tensões que impedissem consensos nacionais. Até porque o governo é suportado por uma maioria parlamentar clara, o que em princípio limita o espaço para protagonismos do tipo que se viu recentemente com governos minoritário e a chamada “geringonça” em Portugal. Por outro lado, o que está em jogo no momento é a recuperação da dinâmica pré covid-19 e a preparação do país para enfrentar as incertezas e imprevistos que vão aparecendo quase todos os dias, algo que devia ser a preocupação chave de todos os actores políticos. Por isso é que não deixa de ser revelador o facto de até agora, passado um ano, não se ter conseguido ir além do ambiente habitual de crispação, dos ruídos causados pelo excessivo protagonismo comunicacional dos políticos e das tentações populistas que apostam no ressentimento das pessoas e na descredibilização das instituições para assegurar apoio a certas formas de jogo político que talvez em tempo eleitoral tivessem algum sentido, o que não é o caso. 

No sistema de governo criado pela constituição de 1992 o Presidente da República não governa nem o governo é politicamente responsável perante ele, apesar de por ele nomeado. Mas tem um conjunto de competências tanto na nomeação de altos cargos públicos na magistratura judicial, no ministério público, nas forças armadas e para as representações do país no exterior que deixam claro o papel essencial que desempenha para o funcionamento do sistema e para a estabilidade institucional. Também, enquanto órgão de soberania singular, é representativo da unidade da Nação e do Estado e garante o cumprimento da Constituição. Está, por todas essas razões, em boa posição de desempenhar um papel fundamental na criação do ambiente político-institucional favorável à criação de consensos das forças políticas quanto aos objectivos comuns. 

A dificuldade em ir por esse caminho parece estar no como fazer sem interferir na governação. Até agora as eleições legislativas têm resultado em maiorias absolutas na governação do país limitando o eventual protagonismo e espaço de manobra políticos que os sucessivos Presidentes da República poderiam ter com governos minoritários ou em situações de instabilidade governativa. E isso de alguma forma terá contribuído para cimentar a ideia de que o presidente da república em Cabo Verde não teria poderes reais e seria mais uma espécie de “rainha de Inglaterra”. Poderá também ter provocado reacções dos titulares em certas circunstâncias na forma de protagonismo desajustado. 

A origem dessa interpretação provavelmente estará nas discussões que antecederam à Constituição de 1992. O actual sistema de governo de pendor parlamentar foi adoptado em substituição do sistema semi-presidencialista que a monopartidária assembleia nacional popular tinha forçado no texto constitucional em Setembro de 1990 e que se previa como potencialmente desestabilizadora como veio a revelar-se, por exemplo, em São Tomé e Príncipe e na Guiné-Bissau. Criou-se, no entanto, o preconceito de “presidente fraco” para servir de arma de arremesso político e isso não deixou de afectar a forma como os diferentes titulares acabaram por exercer a presidência. Algum protagonismo excessivo poderá ter sido ajudado pela crescente exposição mediática que se tornou normal entre os políticos, imitando o estilo de Marcelo Rebelo de Sousa requintado em tempos do governo minoritário do PS e da geringonça em Portugal. Não é à toa que com o actual governo suportado por uma maioria absoluta está-lhe a ficar difícil manter o estilo de comentar tudo, interpelar ministros e sectores de governação e de servir de ponte a todos. 

Depois da morte de Elisabeth II e de todas as manifestações de apreço pelo que representou ao longo dos 70 anos de garante da unidade da nação, de afirmação de princípios e valores constitucionais e de estabilidade institucional, a acusação de ser “rainha de Inglaterra” já não deve ter a carga pejorativa de antes. Pelo contrário, nos tempos actuais, em que em vários países se assiste ao espectáculo de presidentes, primeiros-ministros e outros titulares de órgãos de soberania a atentarem contra o Estado de Direito democrático e a ir pelo caminho que recentemente o constitucionalista Vital Moreira chamou de “progressiva subversão do sistema de governo constitucionalmente estabelecido”, deve-se dar a maior importância ao cumprimento dessas funções fundamentais ditas da “rainha de Inglaterra. São indispensáveis para se poder preservar as bases da democracia e o senti- do de pertença à comunidade política e nacional necessários para se ter liberdade, pluralismo e alternância de governo. 

De se evitar também é que, em reacção à acusação ou percepção induzida de presidente da república fraco e insuficientemente ocupado porque não governa, se tenha o que alguém já uma vez caracterizou de um “presidente a falar tanta vez, em todo o lado, a propósito de tudo”. A dignidade e a imparcialidade do cargo exigem necessariamente contenção e discrição nas intervenções. A efectividade da magistratura presidencial também depende disso. E em tempos em que se nota da parte de muitos políticos sinais preocupantes do que o autor inglês David Owen chamou no seu livro Hubris de “impetuosidade, recusa de ouvir os outros ou ser aconselhado”, é de maior importância que na chefia do Estado reine a ponderação e a prudência e uma preocupação fundamental em fazer cumprir as regras. Relevância e dimensão histórica ganha-se com esse serviço à nação e não se deixando apanhar por agendas ultrapassadas e narrativas fracturantes.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1093 do Expresso das Ilhas de 09 de Novembro

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,14 nov 2022 8:14

Editado porDulcina Mendes  em  14 nov 2022 9:46

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