Inquiridas, as famílias cabo-verdianas fazem uma apreciação negativa do que para os próximos 12 meses será tanto a sua situação financeira como a situação económica do país. A esmagadora maioria confessa incapacidade de fazer qualquer poupança e o número dos já poucos que podiam pensar em comprar carro, ou construir casa, diminui. As incertezas para o ano 2023 são muitas. Está-se perante múltiplas crises e é natural que haja alguma cautela ou mesmo pessimismo em relação ao futuro próximo considerando que ninguém realmente sabe como irá terminar a guerra na Ucrânia e como se irá resolver a crise energética e diminuir a pressão inflacionista que tem prejudicado toda a gente em todo o mundo.
É um sentimento que de certa forma também é partilhado por instituições como o BCV no seu relatório de política monetária e de parceiros como o GAO no seu último comunicado de 18 de Novembro e também patente nas últimas recomendações do FMI. Demonstram sobriedade nas suas projecções e estimam o crescimento económico de Cabo Verde para o ano 2023 à volta de 8,3% e 8%. Do lado do governo, quase com euforia deixa-se passar a ideia que o país poderá crescer dois dígitos. Também dessas instituições ouvem-se recomendações para se conter o défice orçamental e a dívida pública, para se apoiar quem realmente precisa e durante o tempo estritamente necessário e para se investir na competitividade, produtividade e diversificação da economia. Do governo fala-se em alargar o Estado social, eliminar a pobreza extrema e diminuir a pobreza, mas não fica claro que isso só é sustentável com criação de riqueza nacional. De outra forma, terminados os projectos de ajuda externa, na primeira crise revelam-se as vulnerabilidades anteriores e fica claro para todos a precariedade das populações.
Curiosamente, quem em contraste com o sentimento generalizado das pessoas parece compartilhar o aparente optimismo que emana dos lados do governo é a oposição, mas por razões diferentes. O governo ao projectar optimismo quer destacar o sucesso da governação. A oposição aproveita-se da perspectiva rósea do país para reivindicações que embaraçam quem governa e a deixam de bem com sectores da sociedade que poderiam beneficiar da iniciativa. Um resultado de todo esse jogo em nome da caça ao voto é a impressão de que a classe política está algo desfasada do que se passa no país e a projectar e a discutir o futuro económico e social numa perspectiva que nem é comungada pelas instituições mais sóbrias (BCV, FMI, GAO) na apreciação do contexto nacional e internacional, nem pela esmagadora maioria da população do país, como se pode depreender do inquérito do INE.
Compreende-se assim porque da discussão da proposta do Orçamento do Estado, na semana passada, a oposição saiu a acusar que nenhuma das suas propostas foi absorvida e em resposta o primeiro-ministro na comunicação da segunda-feira veio notar que na discussão do Orçamento do Estado “as propostas da oposição são mais para criar problemas do que para resolver problemas”. Acrescentou ainda que são despidas de racionalidade porque “pedem para reduzir o peso da dívida pública e depois vêm com propostas que aumentam a despesa”. Mas governar é priorizar e não é expectável que a oposição e o governo comunguem das mesmas prioridades particularmente quando não há incentivo de nenhuma das partes para se chegar a acordos.
É facto que em Cabo Verde os governos têm sido de maioria absoluta, e como não precisam dos votos dos outros partidos para passar o Orçamento do Estado, não se sentem na necessidade de negociar qualquer proposta vinda das outras bancadas. Aliás, quando pedem à oposição para votar favoravelmente é só para depois a acusar de não querer ou de não se prestar a servir o interesse nacional. Orçamentos do Estado reflectem as opções de política de cada partido e só em situações excepcionais seria expectável que poderiam disponibilizar-se para chegar a algum tipo de compromisso. Como em geral não reconhecem situações excepcionais, ninguém, e em particular os partidos na oposição, se arriscam a perder negociando com o governo.
Curiosamente, neste tipo de arranjos, em que a corrida ao voto parece ser o móbil principal e razão de discórdia, há questões aparentemente tabu. Num momento de maior rigor na definição das prioridades ninguém parece contestar as centenas de milhares de contos gastos em campos relvados por todo o país, ou, num Estado supostamente laico, os investimentos também em centenas de milhares de contos nas igrejas em nome da salvaguarda do património religioso para servir um turismo diversificado. Prefere-se ficar pelo que dá dividendos políticos rápidos porque traz à tona sentimentos como ganância, inveja e ressentimento como são os cargos, as viagens e os carros. Outros projectos que deviam ser estranhos a um Estado sujeito a comando constitucional que o impede de impor ideologias, expressões estéticas e filosóficas aos cidadãos e à sociedade também parecem não merecer escrutínio mais apertado de todos.
É o caso da promessa feita, esta terça-feira, pelo governo de “tudo fazer” para apoiar o projecto da Fundação Amilcar Cabral que, segundo uma nota de imprensa, “decorre da necessidade de os principais protagonistas dessa história narrarem em primeira pessoa a gesta heroica e libertadora de seus povos, visando repor a verdade histórica, a qual vem sendo deliberadamente adulterada nos últimos tempos”. Ninguém compreende como um Estado liberal e democrático como o de Cabo Verde pode querer apoiar ou financiar um projecto dos antigos dirigentes do partido único, que nos moldes descritos mais parece uma acção de Agitação e Propaganda (agitprop), para salvaguardar a memória da luta de libertação que legitimou esses regimes, do que escrever História. Até parece que o surrealismo impera com a maior complacência de todos quando tal não devia ser, considerando os tempos críticos vividos actualmente e as reais prioridades às quais se tem de dar uma resposta eficaz e tempestiva.
As crises múltiplas que afligem o mundo poderiam ser uma oportunidade para, em algumas questões essenciais, se transcender legislatura e agendas partidárias. Mas, sem acordo sobre a situação real do país e em dissintonia com o sentir das populações tudo leva a crer que não vai acontecer. É mais provável que o jogo de quem dá ou promete mais continue. Dizer um basta a isso é fundamental para se evitar o resvalar para as imperfeições de uma democracia simplesmente eleitoral.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1096 de 30 de Novembro de 2022.