No próximo dia 13 de janeiro, completarão 32 anos da data que assinala o dia em que o povo cabo-verdiano teve, pela primeira vez, a oportunidade de escolher livremente os seus representantes para dirigir o país, inaugurando, em resultado disso, uma nova etapa na edificação de um Estado, independente, soberano e democrático.
O 13 de janeiro de 1991 marcou o advento da segunda república, tendo as forças de mudança, em 1992, aprovado uma nova Constituição que consagrou as linhas fundamentais que enformam e orientam interna e externamente o Estado de Cabo Verde.
Com o 13 de janeiro, e sobretudo com a aprovação da Constituição de 1992, foram consagrados na Carta Magna os princípios orientadores do Estado, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias e o pluralismo político, as eleições periódicas e concorrenciais, a liberdade de imprensa e de expressão, o direito de reunião e de manifestação, a liberdade sindical e o direito à greve.
Porém, a Constituição de 1992 não se limitou à consagração formal da democracia pluralista. Assumiu e postulou o tipo de democracia para a República de Cabo Verde, ao estabelecer como objetivo fundamental“a realização da democracia económica, política, social e cultural e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
A constituição de 1992 não se pautou pela neutralidade programática, determinou, ou melhor, assumiu o tipo ou modelo de sociedade que era e é preciso erigir.
Tendo presente esse pressuposto, os atores políticos não podem perder de vista as promessas de 13 de janeiro, sob pena de, ignorando-as, estarem a navegar em contramão aos desígnios determinados pela própria constituição.
Assim, a democracia que Cabo Verde quer e merece não se compagina com o aprofundamento das desigualdades, exige a construção de uma sociedade justa e pautada pela solidariedade;
A democracia que o país reclama, não rima com conflitualidade sem sentido ou com antagonismos artificialmente criados, antes clama pela colaboração e pelo compromisso sobre as questões centrais do desenvolvimento, sem, no entanto, pôr em causa a preservação das naturais diferenças entre os protagonistas;
A democracia que a constituição de 1992 legou aos cabo-verdianos, não foi concebida para que os partidos políticos não assumam os seus deveres constitucionais, antes foi pensada na lógica de os mesmos assumirem patrioticamente as suas responsabilidades, especialmente o dever de contribuírem para o funcionamento regular das instituições e dos mecanismos de materialização da democracia;
A democracia que o povo cabo-verdiano reclama, apela para a cooperação e lealdade institucional, diálogo construtivo entre diferentes atores, não exclusivamente entre poder e oposição, e sobretudo, a construção de consensos alargados sobre os grandes objetivos nacionais que permitam o desenvolvimento de políticas e de investimentos de longo prazo.
Infelizmente, nos últimos tempos, o que se constata é que alguns atores políticos se esqueceram das suas obrigações para com a democracia e o país.
Não é aceitável que interesses particulares dos partidos políticos, por mais legítimos que sejam, estejam a sobrepor-se aos da nação;
É inadmissível que os orgãos como a Comissão Nacional de Eleições, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, o Conselho Superior de Magistratura Judicial, a Comissão Nacional de Proteção Dados, etc., os seus titulares, maior parte, estão com os seus mandatos “fora de prazo”, há um, dois ou mais anos, sem que isso constitua motivos de preocupação dos que têm a responsabilidade de dotar o país de meios e ferramentas para o seu regular funcionamento;
É inconcebível que o “egocentrismo” dos partidos políticos, virados sobre si próprios e alheios às opiniões, aos anseios e expetativas dos cidadãos, esteja a constituir-se, num germe que poderá gerar soluções que podem vir a pôr em causa a própria democracia.
É bom e é aconselhável que todos pensem nessas disfunções, e que ninguém se convença que o mal só acontece na casa dos outros!
A previsão constitucional de um mecanismo, que exige maioria especial para eleições de membros dos orgãos exteriores à Assembleia Nacional, não pode ser desvirtuada, a ponto de, em vez de se constituir num meio de conferir legitimidade reforçada aos eleitos, estar a ser transformado em mecanismo de bloqueio do normal funcionamento das instituições.
Numa democracia normal, as maiorias e as minorias coexistem, confrontam-se e cooperam-se. Há momentos que se deve fazer valer as divergências porque vivemos numa comunidade regida pela pluralidade.
Porém, a democracia não convive apenas com as divergências. Existem também espaços para o diálogo, convergências, consensos e acordos. As maiorias não podem ter o propósito de esvaziar ou esmagar as minorias. No entanto, as minorias não podem ter a pretensão de fazer valer a sua posição mais do que realmente representam, nem impor ou bloquear soluções ou de porventura governar, quando as suas soluções não foram clara e expressamente sufragadas pelo eleitorado.
É preciso que o peso relativo de cada um nas soluções, corresponda ao peso representacional de cada qual, quer política quer sociologicamente falando. Todas as exigências ou imposições que vão para além disso, não são legítimas e nem são reveladoras de boa-fé negocial.
Os atores políticos não podem contentar-se em invocar simplesmente as regras formais da democracia para que se possa afirmar com propriedade que se vive em democracia. Exige-se mais: é preciso ter presente os valores e a cultura democráticos interiorizados e fazer equivaler o que se afirma e proclama em nome da democracia com o que se faz e se pratica.
Porventura, não é democrático, nem engrandece a democracia, ter importantes instituições públicas a funcionar com os seus titulares com mandatos expirados, por “birra” ou por má consciência democrática dos atores políticos;
Não fortalece a democracia e nem contribui para a sua credibilização que atores políticos, entrincheirados nas suas posições e intransigências, ignorem as necessidades de funcionamento regular das instituições, não se importando, nem com a opinião pública, nem com eventuais desgastes das instituições democráticas aos olhos dos cidadãos;
Não reforça a democracia e nem eleva o nível da cooperação e lealdade institucional que o Presidente da República abandone o seu papel de moderador e de árbitro do sistema político, e entre no jogo político, como aconteceu na recente mensagem dirigida à Assembleia Nacional, a propósito da promulgação do Orçamento de Estado para 2023 ou no discurso de apresentação de cumprimentos do novo ano;
Não é aceitável e nem democrático, que o Presidente da República entenda transformar a presidência da república numa espécie de “comissão especializada de finanças e orçamento”, emitindo “parecer” detalhadíssimo sobre o orçamento (nomeadamente sobre cenário macroeconómico, inflação, política de rendimento, política social, estímulo às empresas, políticas de endividamento, incluindo os passivos contingentes), criticando ostensivamente as opções políticas legítimas do governo, a quem compete governar, e a ser fiscalizado pelo parlamento, e sobretudo pela oposição parlamentar;
Não credibiliza a democracia, nem clarifica o cerne do debate político, que o Presidente da República contraditoriamente, ao mesmo tempo que reivindica por mais gastos públicos, visando a recuperação do poder de compra dos funcionários e dos pensionistas e de mais apoios às famílias vulneráveis e às empresas, paradoxalmente reclama do excessivo endividamento do país, quando sabe como todo o mundo sabe, que o orçamento para 2023, cerca de 77,6% é financiado com receitas internas (impostos e outras receitas), 7,1% é financiado com donativos e 15,2% com empréstimos externos) ou seja: o Estado de Cabo Verde não tem capacidade para financiar integralmente o seu orçamento;
É inconcebível que um presidente da república num momento de uma cerimónia protocolar de apresentação de cumprimentos do novo ano, presenteie o governo, numa deselegância institucional inusitada, com afirmações ostensivas como as proferidas em relação a TCV de que “há uma forte regressão em termos de qualidade, em termos de desempenho e de prestação de serviço público de comunicação social”, sabendo o presidente da república que se porventura existam “regressões” no serviço público de televisão, que a responsabilidade, só poderá ser do governo, que estava exatamente à sua frente, numa missão de gentileza institucional;
A democracia e o Estado de Direito não se compaginam com o desrespeito pelas leis e pela Constituição da República, sobretudo quando a violação das leis é praticada pelas instituições que têm responsabilidades em velar pelo cumprimento da legalidade e de impor respeito e observância pelas liberdades e garantias dos cidadãos;
A democracia e o Estado de Direito não rimam com a existência de instâncias judiciais que se julgam acima da lei e da constituição, quando proferem sentenças manifestamente inconsistentes, incoerentes, contraditórias, eivadas de preconceitos e de reservas mentais;
A democracia e o estado de direito verdadeiros e efetivos não consentem que um deputado seja detido e metido na prisão, através de uma autorização concedida por uma órgão(?) sem legitimidade para decidir naquele espaço temporal, em flagrante violação do nº 1 do artigo 148º, sem que nenhuma instituição, sobretudo aquelas criadas para garantir os direitos e garantias dos cidadãos e a legalidade democrática, tenham movido uma “palha” para que se cumpra a lei e se respeite as regras do estado de direito.
Vivemos, infelizmente, tempos difíceis e complicados em matéria de democracia e estado de direito em Cabo Verde.
Espera-se que perante esta violação grosseira da Constituição da República um ente com coragem nesta república acione e faça útil esse preceito constitucional, segundo o qual “As leis e os demais atos do Estado, do poder local e dos entes públicos em geral só serão válidos se forem conformes com a Constituição” (nº 3 do artigo 3º da CRCV), e se restaure a legalidade e o respeito devido à Lei Suprema.
Não há democracia e estado de direito que aguentem tantos atentados à sua existência e ao seu fortalecimento, sendo, pois, impossível resistir a tantos e diferenciados atropelos.
E uma chamada de atenção e um alerta se impõem à nossa República: é preciso ter e dar mais atenção ao povo que elege, que trabalha, que paga impostos, que acredita num futuro melhor. Caso contrario, e a persistir-se nessa direção eivada pela indiferença, poderemos mais cedo do que tarde, vir a ter problemas, e os exemplos abundam por esse mundo fora. Importa salientar que não se trata aqui de dramatizar ou de prognosticar alguma “hecatombe”: o que se pretende sublinhar é que convinha que os protagonistas da democracia não confiassem, de todo, na paciência ilimitada, melhor, inesgotável dos cidadãos.
No seu livro “O Povo Contra a Democracia”, Yascha Mounk escreve que a “desilusão do cidadão com a política é coisa antiga; hoje em dia, ele está cada vez mais inquieto, raivoso, até desdenhoso. Faz tempo que os sistemas partidários parecem paralisados; hoje, o populismo autoritário cresce no mundo todo, da América à Europa e da Ásia à Austrália.
Não é de hoje que os eleitores repudiam esse ou aquele partido, político ou governo; agora, muitos deles parecem estar fartos da democracia liberal em si”.
É isso! A medida que a política e os políticos se afastam dos cidadãos comuns, o povo se julga não estar mais representado, nem identificado com aqueles que supostamente o representariam. E o divorcio não ocorre de forma imediata, mas as relações vão se corroendo, e quando menos se espera a rutura já aconteceu.
Jeremiah Morelock e Felipe Ziotti Narita, no livro “O Problema do Populismo – Teoria, Política e Mobilização” afirmam que “O populismo e as ameaças às democracias liberais vêm emergindo dos escombros de uma ampla crise de confiança nas democracias contemporâneas, em um processo catalisado pelos profundos abalos socioeconómicos pelo globo desde 2008.
… Da erosão da representação política à ascensão de novas formas de imaginação política ancoradas na produção de “um povo” (e, a partir disso, a reificação da sociedade em componentes antitéticos), há uma densa dinâmica social subjacente. … O populismo, por isso, também estrutura um espaço político fundamentado em novas formas de representação, dando voz aos excluídos e produzindo novas narrativas e identidades de “o povo”.
Ou seja, à medida que as democracias liberais deixam de dar respostas às necessidades dos cidadãos e de corresponderem às suas expetativas, começam paulatinamente a emergir o divórcio e a desilusão, e, assim, abrindo o caminho para as soluções não liberais.
Um alerta para os que acreditam erroneamente no determinismo escatológico, segundo o qual a democracia é o fim último da organização sociopolítica, porque irreversível.
Entre nós, porque somos uma democracia recente, o nível da erosão das instituições da democracia não atingiu o ponto de saturação irreversível. No entanto, se os partidos políticos e os outros atores do sistema continuarem centrados sobre si próprios e nos seus interesses particulares, ignorando e secundarizando os interesses dos cidadãos e da nação, poderá acontecer, a prazo, algo que as outras sociedades e democracias já estão a conhecer.
A título de ilustração, um estudo realizado em 2019 pelo Observatório da Qualidade da Democracia (OQD), um programa de investigação permanente do Instituto de Ciências Sociais que trata de informações relevantes acerca dos temas que envolvem a democracia em Portugal e nos demais países de língua oficial portuguesa, dava conta da existência de alguns sinais que, em condições normais, deveria merecer alguma atenção dos atores políticos.
O Observatório fez uma comparação entre os resultados de um estudo dirigido aos cidadãos da Afrosondagem e os resultados que obtiveram do seu próprio estudo. Os dados obtidos revelavam alguma incongruência, melhor, uma acentuada divergência entre especialistas e cidadãos em Cabo Verde a propósito do grau de satisfação com a democracia. Enquanto que a grande maioria dos especialistas (67%) estava muito ou algo satisfeito com a democracia, os cidadãos estavam consideravelmente mais insatisfeitos: cerca de 77% dos cidadãos afirmavam estar pouco ou nada satisfeitos com o funcionamento da democracia no país.
A explicação encontrada para tamanha disparidade na perceção sobre a democracia entre o grupo de cidadãos e o grupo de especialistas, de acordo com o estudo, se prende com o grau de proximidade às instâncias ou ao centro do poder.
Ora, esses dados deveriam ser objetos de análise, e os sinais emitidos pelos cidadãos deveriam merecer alguma atenção e reflexão.
Não podemos continuar a dormir no colchão “fofo” da democracia, e esquecermo-nos das desigualdades que imperam e que deveriam incomodar a todos, como nos lembra o Papa Francisco na sua Exortação Apostólica EVANGELII GAUDIUM: “Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspetivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras»”.
Está tudo dito! comentários para quê?
Por isso, temos de estar atentos à nossa democracia e ao nosso estado de direito; temos de os aprimorar e fortalecê-los, sobretudo procurar reforçar os mecanismos de participação e de controlo democráticos; é fundamental que os cidadãos se sintam parte inteira das decisões políticas, assegurando, afinal, que a democracia não é apenas um ritual ou um simples exercício procedimental periódico, sem conteúdo substantivo.
O 13 de janeiro deveria ser um ponto de referência. Um dia que seria dedicado à reflexão aprofundada sobre as promessas (e o seu cumprimento) que emergiram dessa dinâmica social e das expetativas geradas a volta desse evento que mexeu profundamente com toda a organização política e social cabo-verdiana.
É preciso que se firme um novo compromisso com as promessas de 13 de janeiro, ou seja: um novo “contrato social”, traduzido na democracia mais participada, na igualdade de oportunidades mais efetiva, na solidariedade e espírito cooperativo e no desenvolvimento que sirva e beneficie a todos.
Assim, e agindo nesse sentido, estaremos a cumprir a Constituição e as promessas de 13 de janeiro.