Carnaval de Mindelo

PorIrlando Ferreira,20 fev 2023 8:08

Irlando Ferreira - Gestor Cultural
Irlando Ferreira - Gestor Cultural

O Carnaval de São Vicente tem feito um percurso histórico de particular importância no contexto das manifestações culturais e criativas do país. Trata-se do maior ecossistema criativo da ilha, no sentido em que cabem nele as diferentes linguagens artísticas – visuais e performativas. Torna-se, assim, fundamental analisá-lo do ponto de vista crítico, de modo a poder contribuir para a sua exponenciação enquanto motor de desenvolvimento efetivo da criação artística em Cabo Verde.

O Carnaval trabalha com diferentes disciplinas artísticas e criativas (escrita, desenho, pintura, escultura, música, dança, artesanato, figurinos e adereços…), bem como meios técnicos e tecnológicos. Ora, se essa é a realidade, não se pode continuar a pensar e realizar o Carnaval sustentado no voluntarismo, “buldonhice” e na boa vontade de um núcleo restrito de criativos, até porque, todos os anos são feitas declarações públicas de renúncia ao carnaval, por um ou outro carnavalesco. O que estará na base desse descontentamento? E se, de facto, essas declarações se traduzirem em ações reais? Quais seriam as alternativas? Contactar profissionais noutras paragens, como o Brasil? E se essa prática fizer escola, quais seriam as consequências? Essas questões fazem parte deste debate à volta do carnaval de São Vicente, de outro modo todo o aparato e discursos em torno desta manifestação não passarão de brincadeira de carnaval.

É fundamental criar condições financeiras para remunerar de forma justa os fazedores do Carnaval e introduzir melhorias a nível logístico. É urgente repensar o formato dos grupos carnavalescos, de modo a assumirem o pleno papel das escolas de formação técnica ao longo do ano, cofinanciadas pelo Estado e por privados. Afinal, são esses os que mais beneficiam do Carnaval – através dessa tal cadeia de valor, muitas vezes apresentada sem sustentação teórica. Na ausência de escolas formais de arte (música, dança, teatro, artes plásticas, entre outras), a alternativa dos grupos de carnaval assumirem a dimensão de formação técnica seria bastante válida, pois os espaços/estaleiros do carnaval são verdadeiros laboratórios criativos e de experimentação.

Se queremos, de facto, um novo poema, porque “sima nu sta no ka podi fica” temos que assumir que é urgente apostar na formação – do jardim de infância à universidade – de profissionais das artes e da cultura, seja aqui, seja no estrangeiro. Não podemos continuar eternamente na base do desenrascanço. O tema desta reflexão é o Carnaval, mas é importante utilizar esta lupa para focar outros problemas: não é aceitável após 48 anos de independência não termos uma escola de arte (pública) em Cabo Verde, assim como não é aceitável não termos um teatro nacional, ou um museu da música/Cesária Évora criado de raiz. Pode-se compreender que, num primeiro momento foi importante apostar na formação de quadros mais urgentes para a gestão do país, mas essa justificação já não faz sentido. A cultura tem sido o principal farol deste país e é chegada a hora de uma aposta clara e inequívoca no seu desenvolvimento baseado na formação. Esta responsabilidade é do Estado através da priorização deste setor. A cultura já deu muito a Cabo Verde! É momento de retribuir na mesma proporção. Não é nenhum favor. Se não fosse a cultura, a coluna vertebral do país, teria dificuldade em se aguentar.

Nesta linha de ideias reforço que o impacto do carnaval não se limita aos resultados criativos e económicos, relativamente fáceis de medir. É importante sair deste limitado quadrado e analisar outros ângulos desta celebração. Não obstante a carência de estudos, é inegável que o carnaval de São Vicente tem um efeito direto na autoestima e na saúde física e mental das pessoas desta ilha. A título de exemplo, e abrindo um parêntese, enquanto escrevo este texto, passa por mim um trio elétrico acompanhado de centenas de pessoas a dançar e a cantar – trata-se sobretudo de uma vivência inexplicável. Ainda sobre o seu valor simbólico manifestado a nível individual e coletivo, é notório o seu impacto, através dos ensaios, preparação física, execução de fantasias, organização.

O carnaval é, também, uma importante rede de relações entre as pessoas e um forte elo de ligação entre as ilhas e a sua diáspora. Esta atividade dá sentido e propósito à vida de muitos indivíduos, justificando, por si só, uma particular atenção no âmbito das políticas públicas para o setor cultural. O reforço do financiamento público e privado é uma das principais medidas a serem tomadas, a fim de se criarem mais justas e melhores condições para este setor. Trata-se de um investimento com retorno garantido tanto para o Estado como para as empresas.

Outro aspeto do carnaval a ter em conta é o pleno entendimento de que este não se limita aos grupos oficiais. Não se pode pensar o carnaval de São Vicente sem pensar nas suas diferentes formas de manifestação, designadamente os grupos de animação/escolas, mandinga, carnaval espontâneo... A sua génese e força residem no múltiplo diálogo. Não saber ler e compreender essa multiplicidade e significado é estar, no mínimo, desatento. A questão de fundo é que esta desatenção tem consequências várias, nomeadamente a anulação de vozes, liberdade de expressão e representatividade. Limitar, proibir de forma deliberada é mutilar parte deste corpo vibrante que caracteriza esta manifestação cultural – transversal a todas as idades, classes sociais e geografias.

Antes de concluir, importa reconhecer e realçar o comprometimento dos grupos com a qualidade, ano após ano. Este facto é cada vez mais notável e, pode ser comprovado através dos andores, alas, músicas, trajes, batucada... Vale, também, realçar as consideráveis melhorias na organização do carnaval de São Vicente. Estas resultam, em especial, do envolvimento de profissionais especializados em diferentes áreas, como som, iluminação, comodidade, assim como a criação da LIGOC São Vicente, previsibilidade de financiamento público e de divulgação. Todavia, para que esta manifestação cultural alcance o seu potencial, há ainda um longo caminho a ser percorrido e decisões a serem tomadas, com destaque para a formação diversificada e forte investimento financeiro. Somente desta forma será possível alcançar outros patamares de desenvolvimento, menos dependentes da improvisação e mais assente no profissionalismo. Este é o poema que desejamos para o carnaval de São Vicente.

Finalmente, sobre a realização do carnaval à noite, vale a pena testar o modelo desde que sejam criadas condições para tal. Caso não funcione não há qualquer problema em voltar atrás. Ainda sobre a possibilidade de criar um sambódromo, não me parece viável, pois retiraria ao carnaval de São Vicente alguns elementos que o caracterizam e diferenciam. O percurso, a escala e a ativação do centro urbano enquanto recinto são elementos vitais e de particular valor simbólico para uma plena fruição desta manifestação cultural.

Na qualidade de Gestor Cultural, aproveito este espaço para reconhecer e homenagear a Dona Lili, uma figura eminente do Carnaval Mindelense, pelo seu contributo através do grupo Vindos do Oriente. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1107 de 15 de Fevereiro de 2023. 

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Autoria:Irlando Ferreira,20 fev 2023 8:08

Editado porAndre Amaral  em  20 fev 2023 8:08

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