Ler e escrever o texto do mundo: na teoria literária e em autores cabo-verdianos

PorCarlos Bellino Sacadura,13 mar 2023 8:09

Numa obra célebre intitulada As Duas Culturas, o escritor e cientista Charles Snow referiu-se à era moderna e contemporânea caraterizando-a como atravessada pela divisão entre as culturas humanística e tecnocientífica, ou entre as letras e as ciências.

Decorridos cinquenta anos da sua publicação, esta situação não apenas persiste, como se agravou – basta ver como as universidades mantêm a estrita separação entre os Departamentos ou Faculdades de Humanidades e as de Ciência/Tecnologia. Contudo, o que pretendo aqui abordar é uma outra dicotomia cultural, menos referida, mas não menos importante: a que separa a razão da imaginação, o conhecimento e a verdade da ficção, a ciência e explicação da narração e compreensão, o logos e a argumentação do mythos e da efabulação. Esta dualidade confere ainda o primado à primeira vertente das polaridades que a constituem, conforme se constata no conceito que define o ser humano, da Antiguidade à Modernidade, desde Aristóteles, que o considera como um zoon logikon (animal racional), até Descartes, autor da ideia moderna do ser humano como sujeito dotado de um pensamento racional, conforme a sua famosa afirmação do Penso, logo existo – Je pense, donc je suis, I think, therefore I am, ou Cogito, ergo sum.

Esta bifurcação do mundo e valorização da(s) ciências e técnicas em detrimento das humanidades (ou das ciências ditas exatas ou “duras” (hard sciences) em desfavor das ciências sociais e humanas) tem amplas repercussões quanto ao modo como concebemos a ciência, o conhecimento, a realidade, os valores e a condição humana (numa linguagem mais técnica, que se pretende evitar na passagem de um ensaio de âmbito académico para um artigo de jornal, iríamos referir-nos às perspetivas epistemológica, gnosiológica, ontológica, axiológica e antropológica). Quando Platão colocava na frente da sua Academia o lema Que ninguém entre aqui se não for geómetra, e Galileu comparava o Universo a um livro escrito em linguagem matemática e geométrica, já estabeleciam uma hierarquia que colocava a matematização e geometrização na base de um texto da Natureza que compete ao cientista tentar decifrar, através da razão e do método científico experimental.

Mas o texto científico responde ao modo como funciona o mundo (as leis do mundo físico ou Natureza), e não ao seu porquê nem para quê – ao seja, à questão do sentido do mundo e da existência. A ambição científica de conceber teorias que sejam um espelho da Natureza, consigam descrevê-la e explicá-la, contrasta com a pretensão estética de redescrever ou reinventar o mundo através do poder criador da arte. É por isso que o filósofo americano Richard Rorty, ao invés de seguir a linha positivista dominante no mundo anglo-americano, que adota a ciência e o método experimental como modelo para todo o saber, propõe a arte como via para pensar e exprimir o mundo. A arte é um espaço de liberdade, porque introduz na realidade a dimensão do possível e no ser o poder-ser, dimensão que Umberto Eco como a da obra aberta – aquela que abre múltiplas possibilidades de interpretação, apesar do peso dos cânones, que estabelecem um conjunto de regras na produção das obras. Nesta perspetiva, a arte representa uma outra racionalidade, um outro conhecimento, ou seja, um heterologos, noção criada por Maria Helena Varela na sua obra O Heterologos emLíngua Portuguesa e depois desenvolvida em Conjunções Filosóficas Luso-Brasileiras, e que o filósofo brasileiro Gilberto de Mello Kujawski define, no Prefácio a este último livro, como não somente uma razão outra, diferente (héteros), como, principalmente, a razão das diferenças, aberta à infinita diversidade e pluralidade do real (…).

Enquanto a razão e a ciência uniformizam o mundo através conceitos e leis universais, a arte exprime a diversidade e singularidade, aquilo que a obra de arte tem de único,designado por Walter Benjamin como aura, contrariando a massificação e a unidimensionalidade. Trata-se da singularidade das obras de arte, correspondente à identidade das Nações, à sua cultura própria, e à identidade pessoal. Um País reencontra-se e reinventa-se também na sua literatura, e Cabo Verde é por excelência um País literário, que podemos percorrer através dos textos, Viajando pelas Ilhas da Sodad, do Sol e da Morabeza (Vera Duarte e Susana Duarte). Poetas, romancistas, pintores e músicos movimentam-se entre a matéria do mundo - terra, ar, água e fogo – e o espírito, o visível e o invisível, entre o espaço exterior da Natureza e o espaço interior da alma, por sua vez em diálogo com Deus (veja-se o Coração de Lava, de José Luís Tavares, tanto um percurso interior do poeta como uma evocação da Ilha do Vulcão).

A arte, que alguns querem remeter para forma de fugir do mundo, trocando-o pela ficção, representa também um modo de aceder ao conhecimento, ao pensamento e à verdade – não como adequação entre as coisas e as ideias (veritas como adequatio res ad intellectum – São Tomás de Aquino), mas como aletheia – desvendamento ou desocultação do Ser (Heidegger) e, particularmente, os livros que integram o campo das humanidades são expoentes de uma formação integral dos cabo-verdianos, como alertam autores e investigadores oriundos da área literária e filosófica, como Fátima Varela, Elter Carlos e Ondina Ferreira. Esta última tem uma afirmação lapidar: O livro é insubstituível para a nossa formação cultural. Por sua vez, Fátima Fernandes em Percursos identitários e Estéticos na Literatura Cabo-Verdiana, parte das obras de José Luís Tavares, João Vário e Corsino Fortes para uma interpretação onde se cruzam a teoria literária, a história, a sociologia e a filosofia, numa perspetiva interdisciplinar contrariando a compartimentação a que o ensino habitualmente sujeita o objeto sistémico e complexo que é a literatura. Finalmente, refira-se o que a filósofa e jurista americana Martha Nussbaum (em Sem Fins Lucrativos – por que a democracia precisa das humanidades) indica como basilar para a formação de cidadãos capazes de um pensamento autónomo e crítico: o estudo das humanidades (artes, letras e ciências humanas).

(Este texto corresponde a uma síntese do que integra o livro coletivo Em Português – Falar, Viver e Pensar no Século XXI, Lisboa, Universidade Católica Editora, novembro de 2022, pp. 208-225 – com autores de Angola, Brasil, Cabo Verde, Macau, Moçambique, Portugal e Timor-Leste) .

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1110 de 8 de Março de 2023. 

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Autoria:Carlos Bellino Sacadura,13 mar 2023 8:09

Editado porAndre Amaral  em  13 mar 2023 8:09

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