Um abalo político de grande magnitude

PorAdriana Carvalho,24 abr 2023 8:35

As minhas tardes ao longo do mês de março foram preenchidas pela leitura do livro de Maria de Lurdes Caldas, intitulado A implantação da República em Cabo Verde – Um abalo político de grande magnitude, editado pela Livraria Pedro Cardoso (2022). Foram horas bem passadas, de deleite e de estudo.

O epicentro do abalo político foi registado na ilha de Santiago “com excursos mais ou menos pontuais à ilha do Fogo”1 e deu origem a uma genealogia de acontecimentos nos anos 1910 a 1919. Este o âmbito temporal do livro da insigne Historiadora, Professora e Investigadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa.

Trata-se de uma reconstituição histórica exemplar a partir de fontes inéditas consultadas em fundos arquivísticos em Cabo Verde e em Portugal e de fontes publicadas na imprensa periódica, memórias, opúsculos, cartas, peças jurídicas e outros documentos e estudos. Nas mais de 400 páginas do livro sente-se o clima da época e o contexto colonial, a emoção dos acontecimentos, o pulsar das personagens. Ouso dizer que esta obra adaptada ao cinema daria um belíssimo filme.

A densidade do enredo, a espessura da intriga e a intensidade da História da República em Cabo Verde não me permitem apresentar numa página de jornal a análise textual que a obra merece. Limitar-me-ei, portanto, a enunciar factos, episódios e testemunhos singulares, divulgados na imprensa coeva, dando destaque ao jornal A Voz de Cabo Verde (1 março 1911 - 19 maio 1919), “que, como outras folhas logo depois surgidas, assumia-se como orientadora de opinião e como instrumento de proselitismo republicano”2.


Um semanário democrático dedicado aos interesses de Cabo Verde

Maria de Lurdes Caldas dedica o 9.º capítulo do livro ao jornal A Voz de Cabo Verde: “Em 1 de março de 1911, (…), com tiragem de 1200 exemplares, saía o primeiro número de A Voz de Cabo Verde, propriedade de Abílio Monteiro de Macedo, [igualmente seu administrador], um importante terratenente e comerciante da ilha do Fogo, à época, estabelecido na cidade da Praia”. O editorial do número inaugural, assinado por Reis Borges, celebra o advento do novo regime republicano em Cabo Verde e a receção a Artur Marinha de Campos, “o governador de que precisava Cabo Verde; para elle não ha ricos nem pobres, não ha brancos nem pretos: ha justiça e só justiça”.3

“Desembarcado no arquipélago no dia 14 de novembro [de 1910], mal tinha ainda pisado o solo cabo-verdiano, Marinha de Campos era chamado a pôr cobro aos assaltos e pilhagens a propriedades, que estavam a ser perpetrados por vários rendeiros das freguesias de Santa Catarina e de São Miguel”. Um dos terratenentes, Aníbal dos Reis Borges culpara o Padre António Duarte da Graça de ter instigado os paroquianos à rebelião. Na perspetiva de A Voz de Cabo Verde, de 22 de janeiro de 1912, o pároco era “um celebre proprietário e grande comerciante (…), cónego nas horas vagas”.4

No capítulo “A perseguição às vestes eclesiásticas”, a autora de A implantação da República em Cabo Verde cita A Voz, de 22 de março de 1911, que noticiou “que a venda de bens de mão-morta em hasta pública permitiria não só indemnizar a Igreja, como desenvolver a agricultura nos férteis terrenos do bispado, onde também poderiam ser construídas escolas, entre elas, uma escola agrícola na propriedade da Trindade”.5

O projeto de lei apresentado pelo Senador Augusto Vera-Cruz de criação de um liceu laico e extinção do Seminário de São Nicolau (Diário do Governo de 19 de junho de 1913) foi analisado pelos jornais da época. A Voz de Cabo Verde deu destaque à proposta, discordando, todavia, quanto ao aproveitamento do corpo docente da instituição religiosa, “um erro grosseiríssimo, um crime de lesa democracia”.6

No termo de “quatro mezes e meio de uma administração ultramarina a pontapés, a administração do sr. Marinha de Campos”7, em 27 de maio de 1911 Joaquim Pedro Vieira Júdice Bicker foi nomeado governador de Cabo Verde, tendo sido hostilizado pela elite islena protagonizada por Abílio Macedo.No semanário, de que era proprietário, em 17 de junho de 1912 “aludia-se ao passado monárquico do governador e ao seu desamor pela República; diziam-no vazio, nada produzindo de útil; as únicas áreas em que se notabilizava eram os piqueniques, os bailes e os chás”.8 “Como depois de tempo, tempo vem, a 19 de setembro de 1915, um novo governador chegava à Praia, restaurando a esperança, Abel Fontoura da Costa (…), um homem de ensino e de estudo”9, que administrou as ilhas num tempo marcado pela entrada de Portugal na Grande Guerra (1914-1918) e posição estratégica do arquipélago no Atlântico Sul.

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O centralismo de A Voz de Cabo Verde no relato da agitação social e das polémicas partidárias provocou “encarniçados duelos de imprensa”, em particular, com O Independente, propriedade de Luís Loff de Vasconcelos (15 janeiro 1912 - 16 outubro 1913), “um órgão pró-governador Júdice Bicker”; com O Progresso (4 julho 1912 - 23 janeiro 1913), crítico de Marinha de Campos, reconhecendo embora “o mérito de ter despertado a população da sua letargia e de tê-la induzido a ler” e com O Futuro de Cabo Verde (1 maio 1913 - 29 outubro 1916),“cujas boas relações com a Igreja e os sacerdotes irritavam sobremaneira Abílio de Macedo e os seus correligionários”.10

Antes de fechar o livro de Maria de Lurdes Caldas, permitam-me acentuar que esta importante obra vem colmatar um vazio na historiografia de Cabo Verde no tempo da República Portuguesa que, sobre essa época, tem sido lacunar e fragmentada.11

1 Maria de Lurdes Caldas, 2022, pp. 8/9.

2 Ibidem, p. 149.

3 Ibidem, pp. 149, 151.

4 Ibidem pp. 32, 37, 38.

5 Ibidem, p 58.

6 Ibidem, pp. 220-221.

7 Nome de um opúsculo da autoria do Padre António Duarte Graça (1912),

8 Maria de Lurdes Caldas, 2022, p. 187.

9 Ibidem, p. 301.

10 Ibidem, pp. 7, 223, 227, 229.

11 Esta constatação é referida na Apresentação do livro pela Autora, p. 8.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1116 de 19 de Abril de 2023.

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Autoria:Adriana Carvalho,24 abr 2023 8:35

Editado porAndre Amaral  em  24 abr 2023 8:35

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