Fibra óptica transatlântica: como ELLA (não) é BELLA …

PorJoão Duarte Fonseca,1 mai 2023 10:09

João Duarte Fonseca - Professor Universitário
João Duarte Fonseca - Professor Universitário

​O dia seis de junho de 2022 foi assinalado como o início de uma nova era para Cabo Verde. A ocasião não era de somenos: com a ligação ao cabo submarino de fibra ótica ELLA, destinado a conectar a Europa à América Latina e – através de Cabo Verde – à África Ocidental, o país deu um salto importante no sentido da competitividade e da integração nos mercados globais de serviços, indispensável para o desenvolvimento sustentável de uma nação cujo principal recurso são os seus cidadãos. Passados nove meses sobre esse ponto de viragem, urge ponderar se Cabo Verde está a explorar plenamente as novas oportunidades abertas por essa autoestrada da informação. Para isso, vale a pena recuar no tempo e recordar como se chegou aqui.

A internet teve o seu início nos anos 60 do século passado, tendo como principal motivação a ligação dos investigadores que nos laboratórios estadunidenses desenvolviam tecnologias em competição com a União Soviética nesses tempos de Guerra Fria. Assim nasceu a ARPANET – antepassada da atual Internet – sendo o acesso a essa rede limitado às instituições académicas e aos laboratórios do estado. Nos anos 80 foi inventado o protocolo TCP/IP que permitiu “democratizar” o acesso dos computadores à rede, e o resto é história. Quatro décadas volvidas, um cidadão com literacia digital mediana pode pagar os seus impostos, renovar o seu cartão nacional de identificação ou aceder ao resultado de um exame médico, e até controlar a sua máquina de lavar remotamente através da Internet of Things, com um click no PC ou no telemóvel. A conectividade necessária para o efeito é fornecida comercialmente por um mercado dos serviços de banda larga que é hoje avaliado em mais de 400 mil milhões de dólares (fonte: www.grandviewresearch.com).

Em paralelo com os serviços comerciais de conectividade, existe uma rede menos visível para o público em geral e que continua fiel ao espírito que esteve subjacente aos desenvolvimentos iniciais da Internet: promover a ciência, o ensino e a inovação. Durante as últimas três décadas a generalidade dos países desenvolveu com esse propósito as chamadas Redes Nacionais de Ensino e Investigação (National Research and Education Networks, ou NRENs, na língua inglesa), ligando através de uma infraestrutura física independente (cabos, servidores, routers, etc.) as instituições de ensino superior e os laboratórios de investigação, cujo labor foi sendo crescentemente reconhecido como uma alavanca indispensável ao desenvolvimento sócio-económico. Através das NRENs essas instituições têm acesso a serviços não comerciais de conectividade – o serviço EDUROAM permite a um investigador brasileiro ligar-se por wifi, seja no seu campus seja numa universidade japonesa, por exemplo – a bibliotecas científicas online (o serviço B-ON permite aceder a artigos científicos sem encargos para o estudante ou investigador) ou a recursos computacionais avançados. As NRENs dos diferentes países estão ligadas entre si por conexões de alto débito, gerando uma estrutura fractal que catalisa a internacionalização das atividades de pesquisa à escala planetária.

Na União Europeia, a rede GÉANT é um aglomerado de 18 NRENs de outros tantos países. Através dessa rede, um estudante ou investigador de qualquer instituição académica ou científica dos países membros está a um click dos mais avançados serviços e recursos de apoio à sua atividade de investigação, mesmo que esse recurso esteja fora da Europa: através de ligações de última geração, a rede GÉANT está integrada num sistema global que tendencialmente conecta todos as instituições académicas e científicas do planeta. Em 2022, a Europa deu um passo importante nesse sentido através da ligação à América Latina com o cabo ELLA, com passagem por Cabo Verde. Subjacente à operacionalização do cabo ELLA está o programa BELLA, acrónimo de “Building the Europe Link to Latin America and the Caribbean”, que tem como objetivo declarado “satisfazer as necessidades de interligação das comunidades de ensino e investigação da Europa e da América Latina”. Além de assegurar a utilização do cabo ELLA para fins académicos e científicos, o programa BELLA apostou no reforço da infraestrutura física existente na América Latina.

Encontrando-se Cabo Verde no caminho do cabo BELLA, era de esperar que esse efeito benfazejo se estendesse também ao arquipélago. No entanto, segundo o site da rede GÉANT numa notícia datada de Dezembro de 2022, “Cabo Verde não se qualificou para aceder à conetividade BELLA por não possuir uma rede académica” (ou seja, uma NREN). Esta circunstância só na aparência é surpreendente, tendo em conta que o Sistema de Ensino Superior de Cabo Verde (SESCV) tem apenas duas décadas de existência. Mas mostra bem a urgência de se suprir as lacunas que ainda afetam o SESCV no sentido de que Cabo Verde possa beneficiar plenamente deste tipo de oportunidade. E não parecem existir grandes obstáculos em matéria de infraestrutura: Cabo Verde dispõe desde 2010 de uma Rede Tecnológica Privada do Estado (RTPE), conjunto integrado de recursos de tecnologias da informação e comunicação com base na qual foi implementada uma bem-sucedida plataforma de governação digital (e-government). Assim se vê que Cabo Verde dispõe dos recursos, humanos e físicos, para operacionalizar uma verdadeira Rede Nacional de Educação e Investigação sem que isso implique investimentos descabidamente avultados. Bastaria reconhecer que o Sistema de Ensino Superior e de laboratórios não-académicos atingiu já um grau de maturidade que justifica a ampliação do âmbito da RTPE – uma ação alinhada com as prioridades de diversos financiadores internacionais – para abarcar os serviços de uma NREN. Oportunidades como a integração no Programa BELLA deixariam se ser perdidas, e a nova era a que Cabo Verde acedeu ganharia um significado mais pleno.

A canção que inspirou o título deste artigo adota um tom fatalista e de braços caídos. Mas de Cabo Verde é legítimo esperar uma atitude proativa perante as oportunidades abertas pela transição digital. O Programa BELLA não é demais. Agir de forma atempada pode ainda resgatar essa oportunidade de acompanhar a marcha global no sentido da Sociedade do Conhecimento. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.

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Autoria:João Duarte Fonseca,1 mai 2023 10:09

Editado porAndre Amaral  em  1 mai 2023 10:09

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