Na verdade, existem algumas pessoas e instituições que há décadas monopolizam as discussões, e não estamos a ver muitos jovens assumindo pública e plenamente a igualdade material entre homens e mulheres. Existem, também, muitos homens que oferecem flores e flores, como que se penitenciando pelos pecados cometidos pelos seus antepassados e que continuam a renovar. No entanto, aplausos merecem o trabalho de muitas organizações não-governamentais que se dedicam a esta causa.
Sem qualquer esforço, constata-se que os olhares têm como destinatário o poder político, solicitando intervenção estatal, esquecendo-se que estamos numa sociedade aberta e plural e o poder político tem limites socio-estruturais e constitucionais inultrapassáveis. No nosso caso, temos sérias e fundadas dúvidas se a intervenção do Estado num ou noutro diploma legal não ultrapassou já estes limites, com efeitos perversos na estabilidade da família.
Temos consciência de que estamos a entrar num ponto em que muitos não querem que se toque, por não ser popular, partindo do pressuposto, nem sempre assumido, de que o que interessa é elogiar. Ousar apontar fragilidades de intervenção neste sector é fazer descer à terra os habituais rótulos do passado, dado algum radicalismo ainda existente em certos posicionamentos, que gera desconforto e desistências.
Seria bom levarmos em conta os ensinamentos da história do movimento feminista internacional, que demonstra caminhos diferentes para se chegar a um mesmo objectivo, cisões e conflitos, sempre que um lado quer ser detentor da verdade. Não seria mau lembrarmos que muitos matizaram a sua posição inicial perante dificuldades e os ensinamentos da experiência.
Seja como for, só um diálogo aberto e fraterno entre homens e mulheres de diversas gerações, que ignora as frustrações e os lamentos históricos, pode conduzir-nos a bom porto, sem grandes dificuldades. Infelizmente, não descortinamos um movimento feminista ou equivalente, com ideais, programas de intervenção consistentes na sociedade e reivindicações mobilizadoras; dizendo as coisas no plural, não vislumbramos movimentos feministas no verdadeiro e próprio sentido da expressão, por mais que se queira defender que fazem parte do passado.
Março regressa para o ano, mas esperamos não ouvir referências pomposas à mulher chefe de família, como ouvimos este ano, como temos ouvido nos últimos anos. Porém, reconhecemos que é difícil isto não acontecer, pois, do abominável homem chefe de família, passamos orgulhosamente para mulher chefe de família, mudando apenas o sexo de quem chefia. Ora, o conceito de chefe de família dizia respeito a um modelo de família hierarquizado, em que o marido tomava todas as decisões relativas aos seus membros, mandava na mulher e nos filhos, donde uma posição de verdadeiro chefe. Apesar de ter perdido o seu conteúdo definitório inicial, o conceito adaptou-se muito bem em Cabo Verde, a uma realidade social diferente.
Com efeito, o Código Civil de 1867, estabelecia, há 156 anos, que a mulher tinha obrigação de prestar obediência ao marido e a este incumbia, especialmente, a obrigação de proteger e defender a pessoa e os bens da mulher, cabendo-lhe administrar todos os bens do casal. A mulher não podia publicar os seus escritos sem o consentimento do marido, nem contrair dívidas sem autorização do mesmo, entre outras pérolas históricas. Deixando de lado as excepções que estabelecia, e o curto período da I República, que lutou contra este estado de coisas, o Código Civil de 1967, estatuía, assim, sobre o poder marital: o marido era o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade, representá-la e decidir em todos os actos da vida conjugal comum, como regra. À mulher competia o governo doméstico, entendido como administração caseira, «cuidando da alimentação, vestuário, calçado das pessoas, higiene, limpeza, roupas, luz, aquecimento, mobiliário e decoração da casa», e pouco mais.
Não se pense que este modelo era tipicamente do espaço jurídico-social português; pelo contrário, correspondia ao estabelecido em França, Alemanha, Itália e Espanha, com mais ou menos molho. A grande lição nesta área vinha e vem dos países nórdicos, que instituíram um modelo familiar alternativo, baseado no princípio da igualdade entre os cônjuges, com todas as consequências daí advenientes e os conhecidos bons frutos que o mundo admira. É para esta parte da Europa que Cabo Verde deve virar e perceber que as políticas públicas mais consistentes vêm destes países e não da França, Portugal e Espanha, com um pesado passado, difícil de aligeirar.
O legislador e uma ou outra instituição pública, de vez em quando utilizam a expressão chefe de família, o que não deixa de ser condenável face ao modelo de família plasmado na Constituição, que recusa liminarmente hierarquia entre os cônjuges, sem prejuízo de discutirmos o modelo ou modelos de família existentes na sociedade cabo-verdiana, matéria em relação à qual existem estudos muito aprofundados.
Se em muitos países se utiliza a expressão família monoparental feminina, para se referir a uma realidade em que existem apenas a Mãe e descendentes, no nosso país, esta expressão ainda não fez carreira e, provavelmente, teremos de revisitar o tema numa futura revisão, tendo como pano de fundo o exemplo Brasileiro, em que a Constituição estatui, lapidarmente: «entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes». Se a expressão família monoparental difundiu-se um pouco por todo o lado nas últimas décadas, a par de outras terminologias, a história cabo-verdiana regista que, esta estrutura familiar, existe há séculos e séculos, por razões diferentes, que vêm desde a escravatura, passando pela nossa secular emigração.
Nesta senda, é mister apontarmos o exemplo positivo do Instituto Nacional de Estatística, que no recenseamento geral da população e habitação de 2021, utiliza conceitos mais adequados a uma sociedade democrática, com expressões como agregados familiares monoparentais nucleares e monoparentais compósitos, numa abordagem plural e complexa da família cabo-verdiana.
Março regressa todos os anos, mas um dia apresentar-se-á como o mês da igualdade material entre homens e mulheres, e não como mês da mulher; será o mês em que flores penitentes deixarão de existir; cabo-verdianas e cabo-verdianos trocarão entre si flores; celebraremos, então, a partida definitiva do chefe de família. Regressa rápido, meu onírico Março!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.