In Memoriam
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Arlindo Andrade (1982-2023), natural de Boa Entrada, Santa Catarina de Santiago, foi um homem de múltiplas facetas e dimensões. Além de poeta e cantor litúrgico (frequentou a escola de música sacra do Patriarcado de Lisboa), foi um cidadão interventivo nos campos das ciências da comunicação e da cultura, outrossim, das ciências políticas, áreas em que se formou a nível de licenciatura e mestrado. Alguns traços da sua biografia atestam tal prodigiosa versatilidade artística. Foi igualmente intérprete e editor de algumas canções da sua autoria, igualmente deu estampa diversas publicações dispersas em coletâneas de poesia e prosa.
Porém, estas breves e merecidas palavras dedicadas à sua memória cingir-se-ão ao seu labor poético, ao abnegado contributo que dedicou à literatura e cultura cabo-verdianas. Ainda que tenha partido tão cedo para a eternidade, o poeta imortalizou-se na arena literária com dois livros de poesia, Para além do Mar (2017, Ed. Vieira da Silva) e Firme e Hirto como o Poilão (2020, Ed. In-Finita), perpassando a transversalidade dos temas da cultura cabo-verdiana e da própria condição finita do ser humano à procura de transcendência e superação.
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A maturidade do poeta explica-se pela orgânica ligação existente entre os dois livros, qual cordão umbilical que se cunhou como indesmentível contribuição à arte poética destas ilhas crioulas. Ao inundar o espírito do leitor com imagens e arquétipos advindos da sua pátria ontológica, a infância em Boa Entrada (junto ao Poilão), lugar onde nasceu, brincou e se embrulhou na genesíaca plasticidade de estórias e tradições orais, os poemas de Arlindo Andrade assumem um ethos singular e uma (con)vocação ao leitor para se entrar no espírito do texto e escutar-lhe o Ser e a força, a energia e o(s) caminho(s) de interpretação da identidade cultural cabo-verdiana aí depositados.
De facto, os seus poemas são hinos de infância, prenhes de um fértil imaginário infantil e pedagógico, sem olvidar que, numa aceção complementar, projetam-se para além de si mesmos, enredando-se em outros fascinantes horizontes temáticos. É nessa construção geo-poética e telúrica, próprio desse húmus inicial (e iniciante) de onde emerge, que o nosso poeta questiona, permitindo, similar e sedutoramente, questionar-se pelo mundo que o envolve. É dessa forma que instala, humana e simbolicamente, o nascimento de temas como: o amor, a saudade, a emigração, a família, a natureza, a história e o património de Cabo Verde, o mar, as festas (batuque, tabanka, morna, funaná, Nossa Senhora da Graça, Nossa Senhora de Fátima, Nhô São Silvestre…), a culinária (os sabores e odores das ilhas – pratos e doces típicos…), as cidades de Praia e Assomada e demais lugares e personagens das ilhas: Pico de Antónia, Palmarejo, Platô, Cruz do Papa, Cidade Velha, Boa Entrada, Seminário de São José, Ilhéu de Santa Maria, ilha do Sal…
Porém, no seio desta complexidade temática erguem temas-força, quais pilares estruturantes, como a linda homenagem à árvore do Poilão, umas das mais antigas de Cabo Verde e que vira o poeta nascer e crescer. Por isso, da sua pena a árvore granjeou excelsos versos, distribuídos pelos dois livros, em poemas como: “Firme e hirto como o Poilão” – que é igualmente título do seu segundo livro; “Pé de Poilão”; “Poilão 1”; “Poilão 2”; “Poilão 3”, “Pé de Poilon” e “Os pássaros do Poilão”.
Outrossim, o poeta, com os pés fincados no seu chão natal, e em ligação com a universalidade que a sua formação humanista e religiosa o proporcionou (sem olvidar as suas cosmopolitas vivências em Lisboa e em Londres), dedica uma série de poemas à própria ideia de poesia (o que é a poesia? O que é ser poeta? – aliás, ser poeta e cantor foi sempre seu sonho!). A própria imagem da Mãe (linda devoção a sua Mãe Vitorina, mas igualmente a mãe-natureza e a Nossa Senhora da Graça e nossa Senhora de Fátima…) é um tema fundante da sua versificação poética.
Empreendeu igualmente saliência aos temas da criança e da infância, temas que, na sua construção poética, comportam um visível sentido filosófico, ao recordar-nos o conceito deleuziano de devir-criança. E que dizer de temáticas como a espiritualidade e a fé, o humanismo e a justiça social, a luta contra o racismo e a descriminação, o infinito e a beleza natural de Cabo Verde? Que dizer de um poeta que escuta a alma da sua Terra, acompanhando-a no seu fazer espiritual, ético, estético, social e (inter)cultural? Antes de proferirmos quaisquer palavras, somos ditos e falados no discurso poético Arlindo Andrade, uma vez que não escreveu para dizer eu, mas sim para revelar o Outro de si mesmo, o Outro que no seu íntimo (na sua identidade) falara mais alto: esse Outro é o próprio Cabo Verde e os seus valores culturais, o humanismo, a manifestação da dor do mundo e sua natural procura de superação, qual redenção que só os grandes poetas saibam dar sentido através da arte, lançando eternas propostas de esperança.
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O desvelamento dos signos e símbolos da cabo-verdianidade e universalidade! Eis a orientação do poeta que, mesmo não seguindo cânones, fez de Cabo Verde a referência ostensiva de sua poiesis (criação). Por isso, no início de 2023 visitara algumas das nossas ilhas, uma viagem geo-poética em prol da sua natural vocação pela expressão e comunicação daquilo que somos enquanto ilhéus, em profícuo e constante diálogo com esta geometria do infinito que nos cerca pelo Mar e pelo horizonte, estendendo-se até Deus.
Estas solenes palavras acerca do trabalho poético de Arlindo Andrade fazem parte de um estudo com maior fôlego, intentando relacionar pensamento e poesia no autor, perpassando campos como a ética do acolhimento, a ética do cuidado da natureza, a metáfora pedagógica da árvore, o imaginário infantil e pedagógico, as situações-limite e a existência humana finita, tendo a árvore do Poilão como mote: «inspiração de muitos gestos / que nos tocam o coração…/ e nos movem a abraçar / a proteger, / e a pugnar pela dignidade/ dos mais infortunados, (…) Mas tu, Ó poilão, / és o exemplo/ de quem abre os braços/ para acolher a todos/ e a todos amar» (Andrade, 2020: 21).
Os poemas de Andrade são cânticos que suspendem a falsa banalidade da vida, conduzindo o leitor a patamares outros que, por isso mesmo, elevados, da existência à procura de um sentido que a explique e a justifique em plenitude. Assim cantou em “Os Pássaros do Poilão”: «Espetáculo belo/ e enternecedor/ Os pássaros que, em bando,/ se levantam do poilão,/ Chilreando/ (..) o bailado acrobático/ Tendo por cenário/ O próprio céu/ Eleva-me o espírito/ Às alturas/ E humaniza-me/ O coração!» (Andrade, 2020: 17).
O refinado labor poético de Arlindo Andrade acrescenta ser, vida e existência à cultura e a literatura cabo-verdianas. Como afirmou o poeta-filósofo, Teixeira de Pascoaes (in A Arte de Ser Português, 1991, Ed. Assírio& Alvim), o poeta fala, entre os homens, a linguagem de Deus, para que eles se progridam moralmente. Ora, assim falou, cantou e celebrou o poeta da Boa Entrada, procurando elevar moralmente a condição histórico-literária do Povo cabo-verdiano, sempre “Firme e Hirto como o Poilão”!
*Professor de Estética e Filosofia da Educação na Universidade de Cabo Verde.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1119 de 10 de Maio de 2023.