A emigração laboral não pode ser um desígnio!... É um alerta!

PorOndina e Armindo Ferreira,11 set 2023 8:14

Tem vindo a causar alguma inquietação, com muitas interpelações ainda por se fazer, esta procura, esta vontade, este desejo explicitamente manifestado por muitos jovens de saírem de Cabo Verde, com rumo a Portugal. E estratagemas para o fazer têm sido vários conforme informação constante de vários órgãos da comunicação social.

Podia parecer um movimento normal, dado que nos habituamos ao longo dos anos a alguma movimentação da população cabo-verdiana que se dizia ser idiossincrática. Só que respeitava a polémica e politizada expressão “querer ficar e ter de partir”. Expressão esta que alimentava uma das grandes vertentes da luta pela independência das ilhas, nos anos 60 e princípios de 70 do século XX, que era a de pôr fim à emigração uma vez independentes, ao desaparecer deste modo as suas razões – fuga à pobreza e procura de bem-estar e vida digna – que, supostamente, se resolveriam com a independência do Arquipélago.

Ironia do destino! nunca o cabo-verdiano emigrou tanto, como após a independência! Uma inversão total nos suportes dessa independência – agora é querer partir e ter de ficar!

Os destinos então procurados, pelos nossos ilhéus, – Estados Unidos e Europa – fecharam-se há muito à emigração cabo-verdiana.

E a acompanhar a ironia surge o paradoxo: É precisamente o país que “voluntariamente” declinámos no passado que hoje mais desejamos e é praticamente o único cujas portas ainda se nos abrem e de forma condicionadamente escancarada – Portugal.

Mas voltando um pouco atrás e fazendo uma pequena retrospectiva à década de sessenta do século passado, data da partida dos homens oriundos do interior da ilha de Santiago, que constituíram a principal mão-de-obra para a construção não só da rede do Metro de Lisboa como da expansão urbanística da chamada Grande Lisboa, destacando-se os empreendimentos “J. Pimenta, Lda”.

Aí tivemos a grande leva, – quiçá a primeira – de migrantes cabo-verdianos que assentou raízes em Portugal. Mais tarde, em 1974, com a ocorrência da Revolução de Abril, uma outra leva, esta «diasporizada» – era mesmo uma diáspora no sentido literal do termo – por motivos políticos, chega a Portugal integrando aquilo a que então se generalizou chamar “Retornados”.

Ora bem, abreviando, de 40 mil pessoas que constituía a comunidade cabo-verdiana imigrada em Portugal, rapidamente se passou para 80 mil na década de oitenta do século anterior, – sem ter em conta as dezenas de milhares que terão adquirido a nacionalidade portuguesa, – chegando a ser, naquela década, a maior comunidade dos PALOP, imigrada em Portugal. Refira-se que alguns estudiosos das migrações defendem que, de uma maneira geral, a imigração tem como destino final a aquisição da nacionalidade do país de acolhimento numa óptica de integração plena, globalizando os direitos dos nacionais.

As migrações hoje, na era da globalização, são de vária índole, de motivações várias e de escalões sociais diversos. Mas aqui, referimo-nos às de natureza laboral feitas por gente profissionalmente pouco qualificada.

Pois bem, como atrás verificamos, tudo isso tem vindo a acontecer com particular frenesim após a independência do nosso país, não obstante as medidas impeditivas que inicialmente se tomaram com evidente incidência no fluxo migratório de saída.

Isto porque nos primórdios da independência havia da parte do regime então instalado uma antipatia aos conterrâneos que viviam no estrangeiro; eram desprovidos do exercício dos seus direitos de cidadania enquanto residentes no estrangeiro; impedidos de ter uma segunda nacionalidade, designadamente a do país de acolhimento; apreciados apenas pela sua ajuda aos familiares constituindo aquilo que se designa de “remessa de emigrantes”; e apelidados pejorativamente de “estrangeirados”. O fluxo migratório de saída, de então, era absolutamente controlado administrativamente pela chamada “autorização de saída” um documento obrigatório para se viajar passado pela polícia, – hoje só praticada na Coreia do Norte – o que manifestamente significa ausência de liberdade definindo deste modo a natureza antidemocrática e repressiva do regime.

O espectáculo triste e deprimente que temos assistido junto dos consulados de Portugal no Mindelo e na Praia é afrontoso e devia encher de vergonha, todas as instâncias do poder, nelas incluídos não só os nossos governantes, mas também, toda a classe política responsável dos últimos cinquenta anos. Neste quadro não podemos culpar aqueles que o fazem à procura de uma saída para uma vida melhor, para o seu bem-estar, mas sim aqueles que não criaram condições para que eles, no seu país, pudessem viver com algum conforto mínimo e dignidade. É simplesmente triste e desolador o que se passa junto dos consulados de Portugal de Mindelo e Praia. Acaba por ser algo deprimente e constrangedor para o País!

O fluxo migratório de entrada é normalmente considerado, uma questão de soberania dos Estados e é regido pelas leis internas baseadas, logicamente, nos interesses directos ou indirectos desses Estados e cobertos – nos países democráticos – pelos preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O direito internacional pouco ou nada tem a ver com isto. Daí que acusar Portugal ou os seus serviços consulares pelo espectáculo deprimente que se assiste em Cabo Verde junto dos seus consulados não faz qualquer sentido. Ou é má-fé ou não é querer aceitar que somos independentes há quase cinquenta anos... e Portugal como País soberano tem o direito de controlar as suas fronteiras e de seleccionar a entrada dos migrantes legislando e procedendo de acordo com os seus interesses de soberania.

Como travar e explicar esta avalanche de jovens que tentam sair do país a todo o custo?

Sobre este assunto, ouvimos de um alto responsável do País de que a emigração é boa e importante porque corresponderá a uma maior remessa de divisas.

Este comentário público, porque o achámos demasiado simplista, não cremos que tenha resultado de uma análise séria do problema, a montante, em pleno século XXI; mas mais, perguntamos: será que tal pensamento sintetiza tudo o que um governante pensa quanto à fuga, ao desperdício da força jovem produtiva para o desenvolvimento do País?

E jamais acreditaríamos que tais palavras comportassem qualquer espécie de regozijo e de alívio pela outorga dessa força produtiva a um outro país. Com quem contará o País, para o seu desenvolvimento?

Perante tal crise, pois de uma crise se configura, ao que parece os responsáveis nacionais ainda não se perguntaram o porquê deste afã, esta ânsia generalizada de deixar a terra? Não vamos apresentar a estatística do desemprego, da pobreza nem da pobreza extrema.

Quase 50 anos se passaram desde a nossa independência. E elencando os principais problemas à partida, muito poucos se resolveram fora da evolução que o decorrer natural do tempo não solucionaria.

Na verdade ao se nos deparar a possibilidade de autodeterminação e independência – duas fases que nos permitiria reflectir sobre uma eventual transição, se necessária; ao invés, quisemos fazer – e fizemos! – jus à célebre frase que se atribui a Ahmed Sékou Touré: “Nous préférons la liberté dans la pauvreté à la richesse dans l’esclavage!” e não demos tempo a uma ponderação sobre os nossos interesses vitais como muito preconizavam alguns que bem conheciam o Arquipélago, e abraçámos uma “independência na pobreza”; e, tal como Sekou Touré, também sem a apregoada liberdade, liberdade esta que levámos 15 longos anos para a conquistar.

Daí que talvez a posição de Aristides Pereira tenha mesmo cabimento quando disse: “depois de ter pensado muito a sério, e muito a frio, sobre todos estes anos”[i] que (transcrevemos) “Hoje em dia, é minha firme convicção que a aspiração do povo de Cabo Verde não era a independência, mas a autonomia”[ii]. (fim da transcrição) Mas talvez quisesse dizer que [a independência] devia ter sido negociada em vez de se aceitar a encenação[iii].

Mas ao que parece também [a posição de A. Pereira] se respaldava no pensamento do seu camarada, amigo e mentor Amílcar Cabral que a seguir transcrevemos:

«Se porventura em Portugal houvesse um regime (…) disposto a construir não só o futuro de Portugal, mas também o nosso, mas em pé de absoluta igualdade, quer dizer que o Presidente da República pudesse ser tanto de Cabo Verde (…) como de Portugal, etc., que todas as funções (…) fossem igualmente possíveis para toda a gente, nós não veríamos nenhuma necessidade de (…) fazer a luta pela independência, porque já seríamos independentes num quadro humano muito mais largo e talvez muito mais eficaz do ponto de vista de história»[iv] (fim de transcrição). E, igualmente, se inspirava nas conhecidas conversas e insistência de Mário Soares quanto à independência de Cabo Verde.

Acontece que entre as ilhas Atlântidas[v] ou Macaronésia, na qual nos inserimos, somos aqueles que têm o pior nível de vida. E somos também aqueles que durante estes últimos 50 anos menos se desenvolveram.

É com elas que nos comparamos – Açores, Madeira e Canárias – as da Macaronésia. É o espaço geográfico a que pertencemos e no dizer de Francisco Tenreiro [aquele em que os arquipélagos citados] apresentam “estreitas afinidades bio-geográficas”. Eles, como nós, elegem democraticamente o seu presidente, a sua assembleia (deputados), constituem os seus governos e têm os seus tribunais – administram integralmente os seus respectivos territórios. E não perderam a sua identidade! Só não têm Forças Armadas e Negócios Estrangeiros, e não têm também a mão estendida para fazer os seus orçamentos ou financiar os seus investimentos – reivindicam, não pedem! Não precisam – e não têm necessidade económica de o fazer – de visto para entrar na Europa nem nos Estados Unidos.

Não nos parece oportuno nem pertinente entrar por aí, porque teríamos talvez que falar e de nisso incluir, a ganância de poder – o poder pelo poder – como motivação principal dos jovens candidatos a governantes da luta pela independência o que iria encurtar a sua já curta visão cultural, económica e política do arquipélago; e também porque nos parece que aqui sim, adequa-se o adágio “não vale a pena chorar sobre o leite derramado”.

E voltando à nossa emigração, perguntamos o que pensam todos os nossos responsáveis políticos fazer – Presidente da República, Governo, Assembleia e as demais organizações políticas– para travar esta compulsão da nossa juventude em deixar o país?

É sabido que em democracia o controlo de saída só pode ser regulado através de medidas de política. O tempo de «autorização de saída» – via administrativa repressiva – passou porque só lá podia estar, na ditadura e repressão da 1ª república.

Só políticas sérias e realistas de desenvolvimento, – sem retóricas propagandísticas e de conservação de poder, nem debates estéreis e inconsequentes, – o que implica aproveitar com inteligência e pragmatismo todos os potenciais recursos – sobretudo os humanos – existentes, poderão salvar este surto, sustar o movimento ou mesmo – quem sabe? – reverter-lhe o sentido. O exemplo de Coreia do Sul e Taiwan costuma ser apresentado como paradigmático. Consistiu numa política de retorno da sua emigração pensante, da sua gente qualificada, dando-lhes e criando-lhes condições para desenvolverem e aplicarem nos seus países de origem todas as suas potencialidades e conhecimentos que adquiriram na emigração.

Impõe-se, pois, uma orientação estratégica para a questão migratória – normalmente associada a uma agenda demográfica – centrada na educação, formação, trabalho, fixação dos jovens, economia e, obviamente, desenvolvimento.

Mas o que na realidade também muito nos preocupa nesta saída em massa de jovens sem qualquer preparação, com uma escolaridade precária e sem estarem, na sua grande maioria, aptos a expressarem-se na nossa Língua segunda, a Língua portuguesa, é a sua impreparação para enfrentar e concorrer em Portugal a empregos com gente oriunda do Brasil, de Angola, que fala português e, consequentemente, com as desvantagens de resultados bem conhecidos.

Os eventuais insucessos, fracassos, frustrações e desencantos com origem nesta desvantagem linguística ou outra, podem ter um forte e grave efeito boomerang e trazer para o País outros problemas bem mais graves do que os de partida.

A sociedade cabo-verdiana, os seus responsáveis, terão de prestar mais atenção a este fenómeno.

Falamos de Cabo Verde, mas parece que o fenómeno se estende a outros PALOP e, incompreensivelmente, ao Brasil. E de tal forma neste último país que o seu presidente já veio dizer que qualquer dia haverá mais brasileiros em Portugal do que portugueses.

O problema é complexo, sabemos, e assente em causas, motivações, particularidades, circunstâncias e especificidades de cada país, não obstante permanecerem certos parâmetros, que, parece, serem comuns a todos: Falta de visão estratégica da classe política e ineficiência dos governos.

A emigração laboral não pode ser um desígnio!... É sempre um alerta!

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[i] In “Expresso” de 20 de Novembro de 1993 pág. 45-R.

[ii] Idem.

[iii] Vide “Quase Memórias – Da Descolonização de Cada Território em Particular - 2º Volume” – António Almeida Santos – Casa das Letras – 2007.

[iv] CABRAL, Amílcar – Guiné-Bissau: Nação Africana Forjada na Luta. Lisboa: Publicações Nova Aurora, 1974, p. 117.

[v] Ilhas Atlântidas − arquipélagos [Açores, Madeira, Selvagens e Canárias] que no Atlântico, e em frente ao «Velho Mundo» se estendem entre 15 e 400 de latitude norte – Francisco Tenreiro in Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe: esquema de uma evolução conjunta. –Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação Nº 76 - Ano VII - Janeiro de 1956.

Publicado no coral-vermelho.blogspot.com

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1136 de 6 de Setembro de 2023.

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Autoria:Ondina e Armindo Ferreira,11 set 2023 8:14

Editado porAndre Amaral  em  11 set 2023 8:14

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