Gestão dos riscos naturais na Sociedade do Conhecimento

PorJOÃO DUARTE FONSECA,9 out 2023 7:50

JOÃO DUARTE FONSECA - Professor Universitário, Geofísico
JOÃO DUARTE FONSECA - Professor Universitário, Geofísico

No Leviatã, obra fundadora do conceito de Contrato Social, Thomas Hobbes salientava já em 1651 que “a finalidade da República é a segurança dos cidadãos”. Cerca de um século depois, o Desastre de Lisboa de 1755 levou Jean Jacques Rousseau, na sua obra Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, a alertar para as responsabilidades do Estado na prevenção dos riscos naturais.

As preocupações com o ambiente que caracterizam o século 21 trouxeram de novo para a berlinda a exposição dos cidadãos aos desastres, entendida agora como parte da vulnerabilidade do ecossistema. Atualmente as Nações Unidas reconhecem que “um novo Contrato EcoSocial é vital para alcançar os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”.

A informação científica e tecnológica está no cerne da prevenção dos desastres naturais, uma vez que só nos podemos defender daquilo que conhecemos. Em conformidade com este princípio de senso comum, que está na base da Sociedade do Conhecimento, a Estratégia Internacional para a Mitigação de Desastres da Nações Unidas reconheceu em 2009 que “é necessário um esforço acrescido para alcançar uma interação mais efetiva entre ciência, tecnologia e a definição de políticas de redução dos riscos naturais”. A Sociedade do Conhecimento é definida pela sua capacidade de produzir, processar, transformar, disseminar e usar informação para criar conhecimento aplicável ao bem-estar e ao desenvolvimento das populações. No cerne desta abordagem está uma nova cultura de partilha de informação, que passa a ser obrigatória: a título de exemplo, todos os dados resultantes de atividades de investigação apoiadas pela União Europeia têm que ficar no domínio público. Em 2013, estas diretivas de Open Science foram subscritas pelos ministros da ciência de todos os países membros do G8.

A gestão dos riscos não se pode limitar à produção de conhecimento sobre os fenómenos naturais, sendo crucial a efetiva articulação do Ecossistema de Ciência e Tecnologia (universidades, instituições não académicas de investigação, agência nacional financiadora da investigação) com os restantes agentes do Sistema de Gestão dos Riscos Naturais. O governo central, as agências governamentais de Proteção Civil e as autarquias locais desempenham um papel chave. O setor produtivo, as organizações profissionais e os cidadãos, individualmente ou através de múltiplas organizações da sociedade civil, são também agentes da mitigação dos riscos.

Em Cabo Verde, a Lei de Bases da Proteção Civil (Lei 199/V/99) estabelece no ser Artigo 2º que “a Proteção Civil é a atividade conjuntamente desenvolvida pelo Estado, pelas demais pessoas coletivas públicas e pelos cidadãos, com o objetivo de prevenir riscos causados por acidentes graves, catástrofes ou calamidades de origem natural ou tecnológica e debelar os seus efeitos sempre que essas situações ocorram, socorrendo as pessoas e bens em perigo”. Por sua vez, o artigo 4º estabelece que “os objetivos fundamentais da Proteção Civil são: a) Prevenir a ocorrência de acidentes graves, catástrofes e calamidades; b) Atenuar os riscos inerentes à ocorrência desses fenómenos e limitar os seus efeitos; c) Socorrer e assistir as pessoas em perigo; d) Contribuir para a reposição da normalidade, nas zonas atingidas”. O Artigo 31º estipule que as instituições de investigação técnica e científica são entidades com “dever de colaboração permanente em ações de proteção civil”. A análise dos estudos sobre riscos naturais afetando Cabo Verde no quarto de século em que vigorou a Lei de Bases da Proteção Civil indicia que não estejam reunidas as condições para a efetiva participação do Ecossistema de Ciência e Tecnologia Cabo-verdiano na prevenção e mitigação dos riscos naturais.

Em 2014 foi realizado o estudo “Análise e Cartografia dos Riscos Naturais em Cabo Verde”, com apoio do PNUD. Trata-se de um estudo abrangente, conduzido segundo o estado da arte a nível internacional, que cobre a totalidade dos fenómenos naturais adversos que afetam Cabo Verde. O principal resultado do estudo foi a elaboração de cartografia de risco em suporte digital, destinada a servir de base para: - elaboração de futuros planos diretores; - implementação de estratégias de mitigação de desastres; - introdução de códigos de construção por parte dos municípios; - definição de prioridades de intervenção por parte das agências internacionais; - otimização das medidas estruturais e não-estruturais por parte do Ministério do Desenvolvimento Rural; - formação académica avançada na área dos desastres naturais que afetam o território.

Parece seguro afirmar, com base na informação disponível passada uma década, que vários destes objetivos não terão sido atingidos de forma satisfatória. Se é verdade que o estudo, encomendado a uma empresa estrangeira, constitui informação muito relevante para a gestão dos riscos naturais, não é menos verdade que Cabo Verde carece ainda de condições para transformar essa informação em conhecimento útil. Por outras palavras, na ausência de um Ecossistema de Ciência e Tecnologia bem consolidado, o Sistema de Gestão de Riscos Naturais de Cabo Verde fica na posse de uma partitura – a informação – mas serão incapazes de interpretar a música – o que requer conhecimento.

A mitigação dos riscos naturais é uma área em que as potencialidades da Sociedade do Conhecimento são incontestáveis. Contudo, Cabo Verde padece ainda de lacunas sérias no seu percurso em direção à Sociedade do Conhecimento. Para orquestrar os esforços da investigação de modo alinhado com as suas prioridades estratégicas, o país carece de uma agência financiadora da investigação científica que promova as áreas prioritárias definidas pelo Governo, e implemente regras consentâneas com as melhores práticas internacionais. Para permitir a efetiva produção, processamento, transformação e disseminação da informação científica, Cabo Verde carece de um “sistema arterial de informação científica”, ou seja, de uma Rede Nacional de Investigação e Educação (NREN). Apenas colmatando essas lacunas Cabo Verde ficará mais habilitado a mobilizar o seu principal recurso – o capital humano – para promover uma eficaz mitigação dos riscos naturais.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1140 de 4 de Outubro de 2023.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:JOÃO DUARTE FONSECA,9 out 2023 7:50

Editado porAndre Amaral  em  9 out 2023 7:50

pub.

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.