Nha Vão e o pendor satírico da morna boa-vistense

PorCésar Monteiro,6 nov 2023 8:29

César Monteiro -  Sociólogo e investigador
César Monteiro - Sociólogo e investigador

​A música cabo-verdiana, seja ela qual for, abordada na sua dimensão social, constitui-se num dos marcadores e veículos privilegiados de expressão da identidade nacional e é produto da convergência, do encontro e da sobreposição de elementos musicais europeus, mormente de origem portuguesa, com elementos africanos, que se verificaram por ocasião do povoamento do arquipélago, na linha de um processo de miscigenação musical, cuja data, todavia, não se pode precisar.

Assente num sistema sociocultural compósito, o universo musical cabo-verdiano diferenciado e complexo, que, resulta, na sua essência, da confluência de diversas tradições musicais, faz parte de uma plêiade de géneros performativos tradicionais dos quais se perfila a morna, nascida na Boa Vista, no primeiro quartel do século XIX, conforme escreveu o poeta e compositor bravense, Eugénio Tavares, em março de 1930, na sua pacata Vila de Nova Sintra. Aliás, a natureza aberta, dinâmica e sincrética da sociedade cabo-verdiana, sob fortes influências externas e o efeito incontornável da globalização, viria, no entanto, a espelhar-se no seu tecido musical cada vez mais diversificado e eclético, marcado, igualmente, pela sua singularidade. 

Considerado o género “genuinamente” cabo-verdiano mais transversal e representativo da Nação, a morna, enquanto facto musical e social, se impôs, em face da sua incontornável dimensão simbólica, em contextos variados de produção e circulação e, por isso mesmo, viria a assumir, definitivamente, a sua marca identitária e distintiva, no seio de uma cultura igualmente mestiça. Originária de uma ilha plana, a morna, inserida num processo musical tripartido composto pelo compositor, intérprete e recetor, que se interpenetram e se complementam, terá privilegiado, na fase da sua génese e evolução, o pendor ou estilo satírico e brejeiro, que se impunha no então ambiente social e musical boa-vistense. Já no sentido contrário e concomitantemente, ganhava terreno a expressão lírica da morna ancorada na psicologia coletiva do povo boa-vistense, em resultado de sucessivos processos de aculturação, transculturação e circulação musical ocorridos na ilha, em diversas épocas. Com efeito, no período áureo  marcadamente lírico das mornas boa-vistenses, sobretudo no posterior àquele em que se impôs, de forma visível, a sua visão satírica, destacaram-se alguns compositores vanguardistas como Mané Razuedje e Djidjungue, entre outros, que, também, compuseram mornas líricas, sem quaisquer laivos satíricos ou de picardia. Daí que, na evolução deste género musical identitário na ilha das dunas, faça todo o sentido destrinçar dois períodos não estanques e delimitáveis no tempo, podendo, no entanto, situar-se o primeiro a partir da data do surgimento deste género boa- vistense, isto é, na primeira metade do século XIX, até à década de 40 do século seguinte, aproximadamente, numa coabitação e convivência pacífica entre o seu pendor pícaro e o lírico. Em última análise, as mornas satíricas, cujas determinantes sociais eram notórias, pretendiam caricaturar e moralizar a sociedade com base em acontecimentos e flagrantes da vida real, mais do que propriamente discriminar a mulher, aliás, um dos alvos preferidos do dito estilo satírico. 

A predominância do pendor satírico da morna no panorama musical, numa ilha que, do ponto de vista sentimental, “planou baixo”, nos primórdios da sua evolução, parafraseando, outra vez, Eugénio Tavares, não tira o mérito ao estilo lírico dos seus criadores, que, de resto, se foi impondo ao longo da sua difusão, a partir, sobretudo, dos fluxos marítimos mais ou menos regulares, que então se estabeleciam entre São Vicente e Boa Vista. Assim, nesse processo de afirmação da componente satírica da morna, numa tentativa da moralização da sociedade, em última análise, assumiria um papel relevante o compositor boa-vistense, que, com o precioso suporte dos instrumentistas, viria a criar obras musicais marcantes. No passado, as mornas satíricas na Boa Vista funcionaram como mecanismo de regulação e controlo social, uma espécie de válvula de escape, numa sociedade pequena, de brandos costumes e de interconhecimento, socorrendo-me, agora, de uma elucidativa expressão sociológica. A dimensão pícara da morna boa-vistense, mais ou menos picante, em razão das conjunturas, verificou-se num período muito anterior ao de Nha Vão, que, de resto, encontraria na sua ilha natal o estilo satírico, num contexto social concreto, e dele se apropriaria. A par de algumas composições líricas, a sátira, às vezes permeada de alguma ofensa, através da música, era, naqueles anos 40, uma forma descontraída de estar na vida, isto é, a sociedade boa-vistense aceitava, naturalmente, o estilo satírico da morna, dentro de certo limites, é certo, desde que o criador, fazendo uso da sua relativa autonomia artística, não transgredisse os valores básicos tradicionais assentes na instituição e agisse dentro dos padrões de conduta social. 

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Boa-vistense de gema, cabrer e filho de uma tradição que já vinha de longe, Nha Vão enquadra-se na linha do estilo satírico da morna predominante na ilha da Boa Vista, que, para lá da sua dimensão recreativa e musical, visava retratar e ridicularizar factos da vida real que fugissem àquilo que se convencionou chamar de consenso. Oriundo de uma família modesta da pacata Vila de Sal-Rei, Serapião António Oliveira, de nome completo, nasce a 30 de outubro de 1923, na movimentada e influente zona de Pad Varela, junto ao mar, onde, também, nascera a sua mãe D. Paula Libânia Fonseca, mais conhecida por Póia, trabalhadeira típica da Boa Vista de outrora. Já o pai, Herculano Nazário de Oliveira, mais conhecido por “titio Herculino”, nascido na Rua de Cavoque, na mesma Vila, era marinheiro da Alfândega, ao mesmo tempo que se dedicava à pastorícia, à agricultura, à pesca e, ainda, a “trabalhos naturais da ilha”. Criado e socializado num ambiente rural, Nha Vão, desde os sete anos de idade, começa a trabalhar na pastorícia e, quando tinha cerca de 11, um conhecido professor português do ensino primário da Vila, de nome Sapinho, descobriu-o nos registos oficiais da ilha e pô-lo na escola, à custa do próprio docente. Todavia, apenas frequentaria a primeira e a segunda classe, interrompendo, depois, os estudos com o intuito de prosseguir a sua atividade laboral no campo, mais concretamente em Baxón, como pastor e agricultor, a sua paixão, ao tempo. 

Na ausência de melhores meios de subsistência, a pastorícia era um dos principais modos de vida na ilha, numa terra demasiado pobre. A família inteira de Nha Vão trabalhava no campo, todos os elementos do agregado eram, simultaneamente, pastores, agricultores e pescadores, cada um procurava sobreviver às suas custas, no meio de tantas dificuldades. O seu pai Herculino não sabia executar nenhum instrumento musical, nem cantava, apenas dançava com elegância nas salas de baile da Vila, “sem fazer leviandades”, salientava Nha Vão. A também elegante mãe Póia cantava e dançava bem e, pontualmente, era solicitada com o seu grupo para cantar em festas de receção de pessoas que visitavam Boa Vista provenientes de outras ilhas, sem quaisquer fins lucrativos. Não tendo, portanto, herdado a música do lado dos seus progenitores, Nha Vão aos 14 anos começou a tocar viola de dez cordas e cavaquinho com colegas e amigos de infância do bairro onde vivia e, a partir da fase da sua socialização musical informal, já participava em serenatas na Vila de Sal-Rei, na Estância de Baixo e em toda a ilha, cantava e frequentava bailes. Aliás, foi na fase da pré-adolescência em que adquire a sua primeira viola de dez cordas, que, por sinal, comprara ao tio por trinta escudos conseguidos através de trabalho no campo e com a ajuda do seu pai Herculino, proprietário de gado e de algumas hortas de sequeiro. 

Na posse do seu primeiro instrumento musical, em 1940, em plena juventude e na quentura da sua mocidade, Nha Vão compõe a sua primeira morna Fusquinha, em tom lento, privilegiando a linha satírica dominante, que refletia, em parte, as relações sociais que caraterizavam a Vila de Sal-Rei em que a mulher era, de resto, o principal alvo das atenções do compositor e uma das fontes de alimentação da música. Quando faz a sua primeira composição, num momento especial da sua juventude, Nha Vão já tocava cavaquinho e cantava, aliás, ele próprio gabava-se de ser o primeiro “rapaz novo” na Vila de Sal-Rei, que adquire a sua viola de dez cordas com meios próprios. Já na ocasião, costumava frequentar algumas festas como mero meio de diversão e, quando esporadicamente tocava, fazia-o com alguns colegas e amigos que, por certo, não eram tocadores profissionais. Entretanto, em 1944, cumpre o serviço militar obrigatório em S. Vicente, até 1947. No ano seguinte, ingressa na Polícia de Segurança Pública, na Praia, através do seu primo paterno, Torquato, então 2º Chefe da Esquadra Policial. Transferido, sucessivamente, para o Fogo, São Vicente e, finalmente, Boa Vista, Nha Vão permanece no corpo policial até 1961, quando, agastado com aquele tipo de serviço que não lhe dava prazer, resolve, por iniciativa própria, regressar à ilha natal e dedicar-se a outras atividades públicas e privadas, até a sua aposentação em 1990 como funcionário da Delegação Regional do MDR, na Boa Vista, num processo de mobilidade social vertical ascendente, que lhe conferiu maior reputação e prestígio. Considerando-se um “compositor por divertimento”, como ele próprio refere, na sua humildade proverbial, Nha Vão contribui, de forma modesta, para a afirmação do pendor satírico da morna boa-vistense, graças às suas parcas composições, cuja desconstrução analítica apenas deve processar-se dentro do contexto cultural e musical em que foram criadas e produzidas, tendo em atenção, naturalmente, as circunstâncias concretas de ordem psicológica e motivacional do compositor e a sua pertença social.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1144 de 1 de Novembro de 2023.

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Autoria:César Monteiro,6 nov 2023 8:29

Editado porAndre Amaral  em  6 nov 2023 8:29

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