Quaisquer que sejam a sua categoria e o seu estilo, o humor, enquanto estado de espírito ao serviço da existência humana e ferramenta linguística apreciável, tem um papel fundamental na desconstrução dos valores morais da sociedade, preconceitos e atitudes, pela via da ridicularização das situações e da sátira, na perspetiva do desmascaramento de uma realidade intangível, que, de resto, se esconde sob a máscara do sério. Tirando proveito desse olhar privilegiado e sempre atento sobre o social, através de factos que ocorrem no dia a dia e perturbam as rotinas quotidianas, os cronistas, autênticos sociólogos do quotidiano, servem-se do dito humor observacional e usam a crónica como desvendamento do social.
Dotado de um talento especial, o humorista aponta para os absurdos do quotidiano, que não é uma parcela isolável do social, capta, de maneira arguta, realidades sociais, pela via da observação, identifica estereótipos sociais, sublinha e exacerba ou caricatura certos traços distorcidos provocadores de riso aos quais se associam determinados tipos sociais enquadrados em processos relacionais. Neste sentido, pode considerar-se o humor, como terá afirmado alguém, um processo de “policiamento cultural” sobre personagens poderosos, que ostentam certos comportamentos prepotentes e práticas de vida prenhes de simbolismo identitário não conformes com as normas sociais. Na linha do discurso humorístico e, tendo em vista a desconstrução da realidade, na aceção do conceito do filósofo franco-argelino, Jacques Derrida (El Biar, Argélia, 1930 – Paris, França, 2004), a construção de uma nova representação e a sua compreensão adicional inscrevem-se as mais recentes Crónicas d’kel país da autoria do cronista mindelense, Rocca Vera-Cruz, nascido na cidade do Mindelo, em outubro de 1963, precisamente na antiga Rua Custódio Duarte, atual Franz Fanon. Produzidas num contexto insular, urbano e estratificado, num autêntico jogo e brincadeira de significados entre os vários aspetos da vida mindelense, as seis dezenas de crónicas humorísticas contidas no referido livro não visam essencialmente o riso desbragado, que ridiculariza e humilha, ainda que, pontualmente, elas possam contê-lo, de forma explícita ou implícita, graças à comicidade e à significação social dos seus textos. Mais do que provocar riso e de se vingar através dele, Rocca Vera-Cruz, demarcando-se do sarcasmo perverso e cínico que corrói o sistema, do ponto de vista ético, defende, nas suas crónicas, uma postura mais corretiva, integradora e equilibrada da ordem social mindelense, ainda que, à partida, não tivesse o firme propósito de a explicitar.
É certo que, em São Vicente, o humor, nas suas diversas formas, penetrou na cultura popular da ilha, e, em especial, na música, uma das maiores expressões identitárias e culturais cabo-verdianas, mercê do prestimoso contributo de prestigiados trovadores como Ti Goi, Frank Cavaquim, Cacói e Manel d’Novas, enquanto na literatura letrada (escrita), assente em padrões, códigos e tipos de elaboração próprios e diferenciados, a sua presença, ao invés, é irrelevante, por razões que se desconhecem.Na generalidade, a literatura letrada cabo-verdiana não se carateriza pela força da presença do humor e do riso, mesmo numa cidade portuária como a do Mindelo, onde a cultura humorística é estruturalmente presente. De facto, o humor tem encontrado terreno fértil nas chamadas “fraldas” ou cinturas periféricas da cidade, ainda que, no plano estritamente literário, se paute pela ausência. Os artistas que têm escrito sobre S. Vicente, convenhamos, privilegiam a “fralda” (periferia urbana), relegando para o segundo o plano a “morada” (centro urbano) com a sua Praça Nova, a Rua de Lisboa e os seus estilos de vida, os seus tipos sociais típicos, os seus personagens e os seu estereótipos. Creio que, hoje em dia, não há em São Vicente, em rigor, uma cultura popular de “fralda” nitidamente separada daquela da “morada”, diria, esta já mais letrada, urbana e elitista. A clássica dicotomia “fralda”- “morada”, que prevalecia no passado, hoje se vai esbatendo gradualmente, graças aos processos dinâmicos de integração social e cultural em curso, numa aproximação gradual entre esses dois pólos e numa espécie de continuum, sob o impacto da urbanização e da modernização da ilha do Porto Grande.
Apesar de o pai Júlio Smith Vera-Cruz, sanvicentino de ascendência inglesa, do lado do seu trisavô paterno, ser um homem bem-humorado, típico do brincalhão de Soncent, que brinca com tudo e todos, a verdade é que Rogério Paulo, de nome próprio, não herdou da família nenhuma veia literária e muito menos humorística. Filho de mãe bravense – a D. Ondina -, que não cantava nem dedilhava mornas de Nhô Eugénio, Rocca apanha e desenvolve a sua vocação humorística sobretudo na rua, um laboratório social “terrível”, como ele próprio confessa, onde o cronista tem sempre “uvide ftide” (ouvido atento), auxiliado pelo seu bloquinho de notas, tal como fazia o exímio compositor Manel d’Novas de quem, aliás, o cronista se diz um admirador confesso, que o tem inspirado nas suas lucubrações literárias. Todavia, não se sentindo atraído pela poesia lida ou escrita, nem se julgando preparado para se aventurar no género literário do romance, já homem feito, contava cerca de trinta anos de idade, Rocca resolveu escrever as suas primeiras crónicas humorísticas que hoje totalizam cerca de três centenas, naquilo que, seguramente, viria a marcar o arranque do seu processo de socialização literária.
Imbuído da vontade de escrever, Rocca, economista de formação, todavia, não tinha quaisquer motivações especiais que não fossem deixar sair aquele desejo de transpor para as crónicas aquilo que ia captando à sua volta, particularmente na sua ilha natal, através de conversas do dia a dia e da observação no terreno, ao longo de um interessante processo comunicacional, que foi melhorando gradativamente. No início, por vezes, o próprio cronista considerava algumas das suas crónicas muito causticas e ácidas e, todavia, sem as eliminar, trabalhava aquela causticidade, filtrava e melhorava a qualidade da mensagem, na perspetiva da sua descodificação pelo recetor. Com o tempo, Vera-Cruz chega à conclusão de que, tendo em conta o perfil dos seus leitores sanvicentinos, o efeito desconstrutivo do seu discurso seria muito maior e mais eficaz se fosse utilizada a arma do humor e, em circunstância nenhuma, o sarcasmo. Contudo, sem pretender reivindicar a função educativa das suas crónicas, o cronista mindelense tem a consciência de que elas apenas alertam para determinadas situações, e, neste sentido, mais do que pedagógicas, são essencialmente construtivas e apimentadas com o humor, num estilo próprio que o carateriza.
A maior parte das temáticas das suas crónicas é sugerida em conversa do próprio cronista com pessoas amigas, que, depois de verificado o seu interesse cronístico, são retomadas e aprofundadas em bares e noutros espaços públicos, através da observação in loco, até ganharem o formato de crónicas. Dir-se-ia que, na generalidade, as narrativas humorísticas de Rocca, que alertam para determinadas situações sociais do dia a dia e abordam uma diversidade de temáticas, inspiram-se e utilizam as ditas “fraldas” ou periferias da cidade do Mindelo, nos seus autênticos submundos, como fonte privilegiada e são escritas numa linguagem simples, agradável, leve e coloquial. Autêntico “mnine d’Soncent”, Rocca tem uma estratégia clara e direcionada como cronista do quotidiano mindelense. O material bruto que observa e recolhe no local onde se desenrola a cena, por sugestão de amigos, bastas vezes, nem sempre contém humor, é o próprio cronista que o trabalha e, a maioria das vezes, lhe injeta o necessário humor, que poderá ou não suscitar o riso, enquanto “facto social total”, tomando de empréstimo uma expressão do famoso sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss. No entanto, há crónicas que, à nascença, já são portadoras de algum humor, isto é, têm alguma base de humor, que, posteriormente, é trabalhado e refinado pelo cronista. Para lá da sua função educadora, socializadora e identitária, o humor cronístico tem permitido a Rocca Vera-Cruz desconstruir e pôr a nu uma realidade enganadora, construir vários discursos e várias situações daquilo que lhe parece ser melhor para a sua ilha natal que, tanto preza, e, ao mesmo tempo, recuperar dezenas de expressões da variante linguística sanvicentina que, supostamente, se teriam perdido, não fosse a fixação do texto literário.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1146 de 15 de Novembro de 2023.