A propósito da manifestação dos professores

PorLígia Dias Fonseca,23 nov 2023 14:53

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Desde ontem que tenho visto a colocação de barreiras condicionando a circulação à volta do quarteirão onde se encontra o Palácio da Assembleia Nacional. Hoje ouvi, no jornal da manhã, que os professores querem manifestar-se para mostrar aos deputados nacionais que são muitos e que estão unidos nas reivindicações que apresentam.

Há já uns tempos que me causa algum desconforto ver como as manifestações por reivindicações de direitos são impedidas de se aproximar dos centros do poder, sendo colocadas barreiras a uma distância que praticamente retira o efeito pretendido pelos manifestantes que é o de exprimirem as suas reivindicações coletivamente em frente do poder político.

As barreiras hoje colocadas não permitirão de forma alguma que os manifestantes possam sequer ser vistos por uma qualquer janela do Palácio da Assembleia. Nacional. Se quiserem que os deputados os vejam, os manifestantes deverão fazer um apelo aos deputados para que saiam do Palácio e vão ter com eles! Porque de contrário nenhum deputado verá uma única das bandeiras ostentadas pelos professores.

Face a esta situação, a questão que se coloca é a de saber em que medida o regime legal em vigor é conforme ao exercício efetivo da Liberdade de Manifestação tal como se encontra consagrada na nossa Constituição da República (CRCV). Neste espaço, não me é possível fazer uma análise com o rigor técnico necessário, o que ficará para um estudo no local adequado. Contudo, podemos e devemos trazer aqui algumas considerações que me parecem relevantes e suscetíveis de fomentar um bom e frutífero debate.

A liberdade de reunião e de manifestação é uma das liberdades fundamentais do Estado de direito democrático e encontra-se consagrada no artigo 53º da CRCV, no capítulo dos direitos, liberdades e garantias individuais. Reza o n.º 2 deste dipositivo constitucional que «a todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação», determinando o n.º 3 que quando a mesma ocorra em lugares abertos ao público deve ser comunicada previamente às autoridades legais, nos termos da lei.

Ao contrário da Constituição de 1980, a Constituição Democrática de 1992 não condiciona o direito de manifestação ao conteúdo, limites e outros requisitos que forem definidos pela lei. A única condição imposta é do dever de comunicação prévia. E esta comunicação é que está sujeita à regulamentação da lei.

A lei que regula o exercício do direito de reunião e de manifestação é a Lei nº 81/III/90, de 29 de Junho, aprovada no âmbito da Constituição de 80 que, como já referi, expressamente determinava, no seu art.43º que a liberdade de manifestação era garantida nas condições previstas na lei. Isto é, esta liberdade teria o conteúdo e seria exercida nas condições que fossem estabelecidas pelo legislador ordinário. É nesse quadro constitucional que a então Assembleia Nacional Popular aprovou a referida lei 81/III/90. Na versão originária desta lei encontramos várias limitações ao direito de manifestação, designadamente, a possibilidade de por razões de segurança não ser permitida a realização de reuniões ou manifestações em lugares públicos situados a menos de 100m das sedes dos Órgãos do Estado, dos acampamentos e instalações das Forças Militares e militarizadas, dos estabelecimentos prisionais, das representações diplomáticas ou consulares e das organizações políticas.

Esta lei foi posteriormente alterada pela Lei nº 107/V/99, já no âmbito da Constituição de 92, mas o legislador manteve o mesmo espírito condicionador que a lei já transportava, o que entendemos não ser conforme com a Constituição democrática de 92 e com a ideia da Liberdade de Manifestação como uma liberdade fundamental, sujeita ao regime especial dos direitos, liberdades e garantias individuais.

Através do direito de manifestação, os cidadãos garantem o exercício de outros direitos e liberdades, nomeadamente o direito de participação na vida pública ( art. 55ºCECV). Sem o livre direito de manifestação, que constitui uma forma de liberdade de expressão do pensamento, o cidadão não tem como influenciar a opinião pública , responsável , cada vez mais, pelo controlo do poder político. Na sociedade democrática, o normal funcionamento das suas instituições democráticas exige que o cidadão tenha possibilidade de influenciar o poder político através do seu direito de protestar, reclamar e reivindicar os seus direitos. Como afirma José Magalhães Godinho “O direito de reunião, tal como o de associação, são os que, ligados ao de liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma, constituem as garantias base sem as quais o cidadão não está apto a cumprir o seu primacial dever de exercer o seu mais sagrado direito, que é o de intervir, o de participar, na vida pública nacional “(Direitos, Liberdades E Garantias Individuais, Lisboa, 2ªed, 1972, pág. 65).

Impedir os professores de se manifestarem em frente ao parlamento, no momento em que decorre a discussão e aprovação de um diploma determinante para o acolhimento ou não das suas reivindicações ( a Lei do Orçamento de Estado), sob o pretexto de segurança, é uma violação grosseira e inaceitável da liberdade fundamental de manifestação .

Mais grave é ainda esta situação quando o edifício do palácio da Assembleia Nacional está rodeado por jardins e espaços em toda sua volta que terminam com grades de proteção e que criam um perímetro de segurança mais do que suficiente para prevenir qualquer situação de perigo. A parte de frente do Palácio Nacional tem uma vasta extensão, com uma distância muito superior a 100 metros, o que também permite estabelecer barreiras de segurança no passeio, libertando toda a Avenida OUA para que os manifestantes se posicionem e expressem as suas reivindicações publicamente em frente ao tão pomposamente chamado Palácio do Povo!

Deixem, pois, os professores passar e exercerem os seus direitos e liberdades consagrados na Constituição da República. Os professores são super-heróis, não são vilões.

PS- Infelizmente ainda continuamos a aplicar e a interpretar muitas leis não de acordo com os princípios fundantes do nosso Estado de Direito Democrático consagrado na CRCV92, mas de acordo com práticas arreigadas e que ainda subsistem do Estado de Partido único que vigorou de 1975 a 1991.

Praia, 23 de Novembro 2023

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Autoria:Lígia Dias Fonseca,23 nov 2023 14:53

Editado porAndre Amaral  em  24 nov 2023 18:32

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