O Manuscrito na Garrafa, um livro inconveniente. Daniel Filipe nos Serviços de Censura do Estado Novo

PorBrito-Semedo,4 mar 2024 9:07

Menino nascido na orela d’ mar, o poeta e novelista Daniel Filipe tem a reminiscência e os sons do mar das ilhas de Cabo Verde, talvez porque retirado dessa realidade muito cedo na sua infância. Os títulos dos seus livros assim o atestam – Missiva (1946), Marinheiro em Terra (1949), O Viageiro Solitário (1951), Recado para a Amiga Distante (1956), A Ilha e a Solidão (Prémio Camilo Pessanha sob o pseudónimo Raymundo Soares, 1957), O Manuscrito na Garrafa (novela proibida pela Censura, 1960), A Invenção do Amor e Outros Poemas (1961), Pátria, Lugar de Exílio (1963, livro de poesia proibido em 1972).

Daniel Filipe, um homem do seu tempo

Daniel Damásio Ascensão Filipe (Sal-Rei, 11 de Dezembro de 1925 – Lisboa, 6 de Abril de 1964), saiu da ilha da Boa Vista ainda criança – com cerca de 2 anos de idade – levado pelo pai português, o Coronel Médico Gonçalo Monteiro Filipe, aí deportado por ter tomado parte numa reunião política de oposição ao governo. A mãe, Rita Maria Ascensão (1888 – 1985), era natural dessa Ilha das Dunas.

Daniel Filipe nunca voltou à sua ilha natal, mas viveu sempre a ela ligado – Se me recordo em bruma e mágoa, / à solidão da ilha trago-a/ dentro de mim petrificada (A Ilha e a Solidão,1957).

Em Portugal, Daniel Filipe fez os estudos liceais tendo sido funcionário público, jornalista, publicitário, poeta e ficcionista. Trabalhou na Agência-Geral do Ultramar e na área jornalística como co-director dos cadernos Notícias do Bloqueio, colaborador assíduo da revista Távola Redonda e do jornal Diário Ilustrado, e também realizador na Emissora Nacional, do programa literário “Voz do Império”.

Na imprensa da sua terra natal publicou alguns poemas no Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação. Em vida, figurou na Antologia da Terra Portuguesa – Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Macau e Timor,Lisboa, s/d (1963), e após o seu falecimento tem sido incluído em diversas antologias.

Daniel Filipe foi um homem do seu tempo e os seus textos reflectem o contexto sociopolítico em que viveu. Grande parte da sua poesia destaca-se pelo combate ideológico e pelo comprometimento social, o que lhe valeu o estigma de poeta neo-realista. Com a proibição do Pátria, Lugar de Exílio, em Março de 1972, a sua Pátria tornou-se, efectivamente, um lugar de exílio onde viria a falecer.

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A sua vida e obra têm sido objecto de estudos e ensaios de que se destaca uma dissertação de mestrado, Uma recuperação de raiz: Cabo Verde na obra de Daniel Filipe, Praia, 1993, Instituto Cabo-verdiano do Livro, da brasileira Simone Caputo Gomes.

O Manuscrito na Garrafa, um livro inconveniente

“Trata-se de um livro inconveniente, sob os aspectos político, social e moral. As passagens assinaladas nas págs. 11, 36 a 38, 46, 49, 52, 70, 73, 75, 77, 79, 89, 91, 119 a 121, 123, 125, 126, 133, 134, 141 e 149, revelam a sua índole.

Entendo que não deva ser autorizado a circular no País.”

O Leitor,

(Ass.) José de Sousa Chaves, Major

Relatório da Direcção dos Serviços de Censura, n.º 6.664, 10-10-1960

A dedicatória do livro a Adelino Tavares da Silva, Papiniano Carlos (1918 – 2012) e Urbano Tavares Rodrigues (1923 – 2013) – jornalistas e escritores filiados no Partido Comunista Português, desenvolvendo intensa actividade clandestina contra o regime de António de Oliveira Salazar – poderá ter feito soar o alarme e alertado os censores para um eventual “conteúdo subversivo” da obra. Distribuído para leitura a 7 de Outubro, três dias foram suficientes para se produzir o relatório e outros dois dias para o veredicto dos censores: “Proibido”. O lápis azul foi implacável, sem apelo nem agravo.

“Livro inconveniente” porque (i) com pensamentos e palavras sacrílegas em relação a “um Deus sem rosto, terrivelmente justiceiro, mas pactuante com a animalidade de cada um”. “E Deus – se há Deus, ou o que quer que seja – a divertir-se à grande com os nossos pequenos comércios, olhando do Olimpo estes seres miseráveis (…). Que náuseas isso me dá!”; (ii) contra a moral e os bons costumes com descrição de cenas de nudismo, “Na solidão da duna, Carlos ficou a vê-la despir-se, peça a peça…”; (iii) com referências explícitas a partes do corpo e à sexualidade, “Sentiu que o tomava um fiozinho de emoção e deu-lhe umas palmadas nas nádegas, para disfarçar. (…) O jogo dos sinais prosseguia”. “E, de novo, o quarto se encheu de rumores luminosos, de gemidos, de palavras ciciadas…”. “Lentamente, como quem busca o caminho esquecido, a boca de Carlos colou-se à pele lisa e morena, em beijos longos, sorvidos, violentos”; (iv) com posições políticas e reuniões de protesto, “Um grupo de democratas defendia a candidatura de um oficial do activo, servidor confesso da Situação, como um processo de abrir brecha no regime. O grosso da Oposição discordava, queria um candidato que desse seguras garantias de fidelidade à República e aos ideais democráticos”, “A eleição fora um desapontamento: os números oficiais tornados públicos davam a vitória ao candidato governamental por uma esmagadora maioria de votos”; (v) com degradação social e moral com mesas de jogos, bebidas…

Enfim, um acumular de referências a actos proibidos e ou censuráveis (?!) por uma sociedade dos bons costumes, pela moral ou opinião social. “Trata-se de um livro inconveniente, sob os aspectos político, social e moral”.

Uma urgência actual, A Invenção do Amor

Prestes a assinalar o centenário do nascimento de Daniel Filipe (1925 – 1964) e quando são passados sessenta e quatro anos da publicação de O Manuscrito na Garrafa e a lembrança do Poeta do Mar, do Amor e da Liberdade está a ficar cada vez mais esbatida na memória dos povos português e cabo-verdiano, urge publicar esta novela para recordar um tempo em que não existia a liberdade de pensamento e de expressão e havia uma mão forte da censura sobre todos.

Daniel Filipe faz parte da história da Literatura Portuguesa do século XX. Nem portugueses nem cabo-verdianos podem prescindir da sua obra e da sua memória. Ela pertence aos dois países – Portugal porque lá viveu, sofreu, amou e escreveu a sua poesia; Cabo Verde porque cá é a sua terra-mãe e permeia toda a sua obra.

A fechar, um fragmento da homenagem feita pela escritora e jornalista Maria Rosa Colaço (1935 – 2004) a Daniel Filipe, publicada no Boletim Cabo Verde, número de Abril-Junho de 1964:

[…] em vez de lágrimas, venho trazer um búzio para junto do teu nome.

Apenas um búzio, Daniel, para uma vez mais e para sempre, aí desse lado, te ficares a ouvir o mar longínquo da tua infância adormecida.

Apenas um búzio, para junto do teu nome

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1161 de 28 de Fevereiro de 2024.

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Autoria:Brito-Semedo,4 mar 2024 9:07

Editado porAndre Amaral  em  4 mar 2024 9:07

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