Totinho, na proeza de unir e elevar os humanos pelo divino dom da música, foi deveras um artista de raro talento que d(n)estas Ilhas do Meio do Mundo – emprestemos aqui o belo título de um dos livros do poeta Osvaldo Osório – desabrochara em tamanha e potencial força de Ser. Essa potência (trans)formadora que do seu Saxofone se espalhou em (re)conhecidas e melódicas notas musicais, erigiu em qual ética da procura do Bem (rastreando aqui a linguagem do Grego Platão). Do Bem como celebração da anímica vida espiritual da cultura destas ilhas algures do meio do Atlântico, destas “ilhas perdidas/ no meio do mar, /esquecidas/ num canto do mundo/ - que as ondas embalam, / maltratam, /abraçam …”, como cantou efusivamente o vate Jorge Barbosa no ambiente da modernidade literária cabo-verdiana (Jorge Barbosa, Arquipélago, 2017, Praia, Pedro Cardoso, pág. 9).
A obra de Totinho se impõe e (con)voca como indesmentível gesto de exemplaridade às novas gerações de músicos e intérpretes, tendo em vista a grandeza (inter)nacional de sua atestada qualidade artística. Qualidade que é, de facto, efeito sensível de perseverantes caminhos na arte e nos mistérios de fazer (e de ouvir) música, qual impulso inspirador, mormentenum tempo em que se deve (sentido de dever) prestar um cuidado ético em prol da formação crítica dos novos artistas do campo da música e de aspirantes que, igualmente, se aventuram nos caminhos musicais. Já nos ensinaram os sinais dos tempos inscritos nas rugas de um Eugénio Tavares (1867-1930), um Agostinho da Silva (1906-1994) ou de um Jean Jacques Rousseau (1712-1778) que “aprendemos pelo exemplo” e que as nobres biografias são fontes de sabedoria e de inspiração, motivando cada um a ser ele mesmo.
Saxofonista de “solos incisivos e curtos improvisos” (Carlos Gonçalves, Kab Verd Band AZ – Música & Tradições, 2022, Praia, Ed. Autor, pág. 243), Totinho, que fora aluno do mestre Manuel Clarinete, iniciou a sua carreira musical na Banda Municipal da Praia e integrou o conjunto Abel Djassi de 1984 a 1989. Fez parte do mítico conjunto musical Tubarões e, de forma incisiva, em 1997 entrou para a banda da Cesária Évora, ainda que, com a morte da Diva dos Pés Descalços viria a seguir uma carreira a solo. Como nos mostra ainda Carlos Gonçalves (2022: 243), o saxofonista atuaria em diversos grupos e acompanharia renomados artistas, contribuindo para o seu visível sucesso na arena musical. Inclusive conquistaria em 2014 o prémio CVMA, na categoria de Melhor Instrumentista, com o CD “Nhá Homenagem”. Alguns discos como “Totinho – Sentimental” (2000), ed. Harmonia, e “Totinho – Nha Homenagem “(2013), são frutos da poiesis (criação) do nosso merecido homenageado.
Que mais dizer acerca de um luminoso, festivo e embriagado espírito criador? Talvez sublinhar que o artista morreu e a que a sua obra permanece à disposição dos intérpretes da cultura musical? Que o Povo cabo-verdiano e as gentes das várias pólis e países por onde passou Totinho se sintam representados pelo dom da sua música? Ou que os efeitos artísticos da sua performance musical são capazes de dar conta da Ontologia do nosso ser? Ou seja: que a sua criação musical deu (dará) conta de quem somos enquanto humanos e cabo-verdianos? Quem foi deveras Totinho? E mais importante, talvez: que sentido a sua Obra reserva para a cultura cabo-verdiana e para as vindouras gerações de músicos e não só? Não tendo respostas diríamos tão somente que Totinho foi eleito pelo dom dos deuses para melhorar a nossa condição artística, estética, humana e social. Outrossim, para melhorar a nossa condição política (sentido de polis), uma vez que a sua arte fez-nos criar laços de fraternidade fundamentantes para uma saudável lógica de organização da sociedade pelos laços de pertença. Fez-nos irmanar em sentimentos da polis (do homem como Cidade, Civitas) querendo se expressar e comunicar, elevar e transcender: sempre unidos pelo mistério de ouvir música! A luta do saxofonista, em verdade a sua disposição para a criação, foi deveras uma luta pela expressão e sublimidade. Os efeitos estéticos da sua obra musical resolveram muitos problemas que atormentaram a existência dos cabo-verdianos.
Claro, para aqueles que acreditam que a arte, mais do que colocar questões e de ser puro entretenimento ou diversão, resolve problemas. E resolvem-nos na justa medida em que a música toca o sentimento e o pulsar do humano coração sofredor, devolvendo-lhe amor e motivando-o a sentir e a pensar, a erguer em cânticos para esferas outras. A conexão emocional que a música exalta no ser humano fortalece-lhe a vida interior (o seu cogito sonhador) em plena harmonia com a natureza e com os entes. É o próprio sopro da Vida que em Totinho, via seu saxofone, encontrou eco para espalhar em cânticos de alegria, mesmo quando o trágico da (na) cultura se impôs como problema existencial.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.