Thugs, Vilões ou vítimas do Sistema?

PorJosé Mendonça Monteiro,5 ago 2024 10:02

José Mendonça Monteiro -  Licenciado em Direito; Técnico da Segurança Pública Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processo Penal Militar
José Mendonça Monteiro - Licenciado em Direito; Técnico da Segurança Pública Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processo Penal Militar

​Era uma vez, numa terra, onde o sol se erguia radiante e se punha com a promessa de um amanhã melhor, mas cujo solo fértil parecia mais destinado a cultivar a delinquência juvenil do que qualquer outra coisa. “Ks dez graozinho di terra, Qui Deus espaia na meio di mar, El j di nos j ca tomado na guerra, É Cabo Verde terra querida”(…) “Terra di paz terra di gozo, Tudo quem djobk’l pa sk rkgoce, El ca ta ba el qu’rk fica, Ma s’el mandado el ta tchora”, (MONTEIRO, Cabo Verde, Terra Estimada). Um cenário digno de um romance irónico onde os problemas sociais são abundantemente irrigados pela preguiça política e a avareza das elites. A juventude, que deveria ser o futuro da nação, florescia sem rumo e a delinquência era um jogo de azar com a sorte sempre contra.

Desde a conquista da independência, Cabo Verde tem enfrentado uma trajetória turbulenta marcada por desafios de má organização e preparação por parte de seus líderes. As estratégias de desenvolvimento muitas vezes foram mal planejadas, refletindo uma falta de visão de longo prazo. A dependência excessiva de ajuda externa comprometeu a independência económica do país, limitando a capacidade de crescimento sustentável. Programas de infraestrutura foram implementados sem a devida coordenação, resultando em projetos incompletos e ineficazes. O setor da educação, crucial para o desenvolvimento, sofreu com investimentos insuficientes e políticas descontinuadas. A centralização da coisa pública nas mãos de poucos perpetuou desigualdades sociais e regionais, exacerbando a pobreza e a exclusão social. Ao longo das décadas, a promessa de um futuro próspero para Cabo Verde permaneceu muitas vezes distante.

O fenómeno das gangues criminosas em Cabo Verde tem raízes complexas e uma evolução marcada por diferentes fases e influências. Nos anos 90, a ilha começou a experimentar os primeiros sinais de atividade de gangues, influenciada tanto por fatores internos como externos, incluindo a imigração e a exposição à cultura de gangues através da mídia e do contato com a diáspora cabo-verdiana. No início, essas gangues eram grupos relativamente desorganizados, muitas vezes formados por jovens em bairros marginalizados, buscando um sentido de pertença e proteção. No entanto, com o passar do tempo, essas gangues começaram a se estruturar e a se envolver em atividades criminosas mais sofisticadas, como tráfico de drogas e armas, extorsão e roubos. A globalização, a internet e as redes sociais desempenharam um papel significativo na evolução dessas gangues, trazendo novas oportunidades e desafios, com as gangues aproveitando para expandir suas operações.

Ah, a riqueza! A sua distribuição parece ser um segredo bem guardado entre os poucos que podem dar-se ao luxo de navegar nos mares do poder. Enquanto isso, a juventude vaga pelas ruas, cultivando sonhos que murcham à luz do dia. Aqueles senhores e senhoras de ternos bem passados têm um talento especial para a usucapião da “re”pública. Jovens, herdeiros de um sistema que parece mais empenhado em garantir a sua perdição do que o seu progresso. Ora, é claro! Quem precisa de bibliotecas, centros desportivos ou atividades extracurriculares quando se tem a rua? A rua, essa universidade informal onde as lições são duras e os professores são os próprios delinquentes.

Políticas comunitárias e inclusão social são miragens no horizonte, enquanto a divisão social é um fosso tão profundo quanto a hipocrisia nas falsas promessas. A manipulação da consciência social, sempre pautada pelo crescimento económico em detrimento do desenvolvimento, cria um cenário onde as instituições de controle são marionetes politizadas. E, para completar, o circo que abre, com a bipolaridade política fazendo das eleições um espetáculo de promessas vazias e slogans reciclados, volta a fechar com a mesma, num cinesseriado, com capítulos infinitos e com “atores” mais empenhados em fazer encenação dos atos perpetuados por esses jovens, do que em resolver seus reais problemas.

“Colarau-Claro”, ah, esses são os contos de fadas da elite, onde o final feliz, quando não “legal”, é “fundamentadamente” garantido. Esses heróis passeiam livremente, oferecendo um exemplo brilhante para a juventude: não importa o quão sujas sejam suas mãos, desde que estejam profundamente desenfeitadas em fundos e recursos. Essa lição é aprendida rapidamente, e os jovens entendem que o crime compensa. E a ciência forense, parecendo um mistério tão complexo quanto um infinito romance paramilitar.

No meio desse caos, as igrejas, que poderiam ser um farol de esperança, algumas tornaram-se mais interessadas em lucro económico do que em almas perdidas. As pregações, agora temperadas com promessas de prosperidade material, desviam-se do caminho espiritual. A fé é mercantilizada, e o templo virou mercado, onde a moeda de troca não é mais a salvação, mas o dízimo generoso. As igrejas, que outrora eram santuários de espiritualidade e consolo, agora, algumas delas se engajam fervorosamente na coleta de dízimos e na multiplicação de seus próprios milagres económicos. Quem precisa de negócios de risco quando se pode investir em templos dourados?

Na privacidade dos lares, a violência familiar é uma praga silenciosa, o som de fundo que embala as noites. Muitos jovens crescem num ambiente onde os gritos são mais comuns que os risos e as palmadas são mais frequentes que os abraços. Educar os filhos, uma tarefa hercúlea quando os próprios pais são os heróis da delinquência. A família monoparental, muitas vezes comandada por uma mãe exausta, enfrenta batalhas diárias para prover o mínimo. A promoção familiar, uma lenda urbana contada nos intervalos das notícias sensacionalistas.

A educação, esse pilar que deveria sustentar a sociedade, é um espetáculo de mediocridade. Professores sem compromisso, sem vocação, sem paixão, oferecendo conhecimento como se fosse um item de luxo em um bazar de quinquilharias. Salas de aula que mais parecem depósitos de jovens desmotivados. E quem pode culpá-los? Estão ensinando para um futuro que não podem prometer e que, na realidade, sabem que é sombrio.

A divisão social é clara e cruel. De um lado, os poucos privilegiados que vivem em bolhas de luxo. Do outro, a grande maioria que luta para sobreviver, numa sociedade que faz questão de lembrar diariamente o seu lugar. E no meio de tudo isso, intervenções comunitárias são um mito. A inclusão nos discursos, mas não nas ações. Os jovens são educados por pais que muitas vezes também foram delinquentes, perpetuando um ciclo de miséria e crime que parece impossível de quebrar. E assim, vivemos felizes e para sempre, na terra estimada. Onde os Thugs vão construindo seus impérios e os jovens transformados em peões, num tabuleiro de xadrez jogado por mãos invisíveis e interesses inconfessáveis.

Apesar dos desafios, há sinais de progresso. Têm sido implementadas políticas de segurança pública mais rigorosas. A criação de unidades especializadas na polícia e a cooperação internacional têm sido cruciais na luta contra os Thugs. O caminho ainda é longo, mas a combinação de medidas sociais, repressivas e preventivas pode ser a chave para um futuro mais promissor para as gerações vindouras. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1183 de 31 de Julho de 2024.

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Autoria:José Mendonça Monteiro,5 ago 2024 10:02

Editado porAndre Amaral  em  5 ago 2024 10:02

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