Instituições ocas e dirigentes submissos

PorIrlando Ferreira,12 ago 2024 7:58

De acordo com Fatos Üstek, as instituições culturais devem aprofundar o seu compromisso com os artistas, baseando-se num conhecimento sólido das artes. Isto requer um acompanhamento próximo dos artistas para entender as suas aspirações, ideias e visões.

A confusão existente em Cabo Verde sobre as instituições culturais e o seu papel, e consequentemente sobre os seus dirigentes e equipas, é alarmante. A classe política e os dirigentes impreparados têm agido com o objetivo de restringir as instituições a meros “serviçais” dos governos e dos políticos que as tutelam. Não é por acaso que um dos diretores artísticos de uma instituição cultural em Cabo Verde usou a seguinte expressão na comunicação social para classificar o seu papel: “como bons mordomos que somos”. Isto é sintomático da consciência que esses dirigentes têm do da sua missão, ou seja, mordomos ao serviço dos seus patronos. Isto é grave, pois seria de se esperar que os dirigentes compreendessem a complexidade do seu trabalho e a importância das instituições culturais. Sobretudo tratando-se de figuras que, mal ou bem, vão formando e informando a opinião pública e as novas gerações. Nota-se uma clara falta de verticalidade e lealdade para com o setor e os seus agentes.

É importante compreender, de uma vez por todas, que as instituições culturais e artísticas são espaços que devem ou deveriam servir o exercício do pensamento livre e ousado, procurando sempre desbravar caminhos para melhores futuros. O seu papel crítico é uma das razões fundamentais para a sua existência. De outro modo, tornam-se espaços ocos, ao serviço da mediocridade e veículos de propaganda política. Isto acontece, sobretudo, porque não existe uma classe de dirigentes (programadores, gestores, curadores, etc.) com preparação e entendimento do seu papel. Na maioria das vezes, são colocados nos cargos para cumprir ordens dos que os superintendem ou tutelam, por conveniência sobretudo política, e não para o bem da classe que é a razão da sua existência. O desmantelamento da consciência crítica por parte de governantes impreparados é objetivo, e infelizmente segue ganhando terreno num espaço que deveria ser por natureza dos profissionais das artes e da cultura. É pena que a classe artística muitas vezes não esteja consciente do alto nível de autoridade e poder que a sua prática encerra. É preciso combater esta situação porque, caso contrário, o terreno vai ficando cada vez mais estreito e árido, pouco propício para sementeira.

Voltando aos dirigentes do setor cultural, há uma tendência clara de passar a ideia de que qualquer um pode exercer cargos dessa dimensão e responsabilidade no setor da cultura. Essa estratégia é usada de forma consciente pelos dirigentes políticos mal-intencionados, para poderem a qualquer momento encontrar bodes expiatórios e/ou justificar o mal que vai no setor. Não é à toa que, em contextos internacionais, aos profissionais das artes e da cultura cabo-verdianos é passado um certificado de incompetência e, normalmente, o discurso que se utiliza é depreciativo. Dirigentes políticos, que pela importância da sua função deveriam ser bons exemplos, fazem o contrário. Chegam às instituições estrangeiras com mãos estendidas à procura de soluções que, nalguns casos, existem internamente. Mas, do ponto de vista político, é preferível essa má figura, que arrasta todos para esse espaço de incompetência e inaptidão. É triste e vergonhoso assistir a esta prática onde os profissionais das artes e da cultura são infantilizados. Mais triste ainda é concluir que muitos não têm nem matéria crítica nem preparação ou verticalidade para se posicionarem, defenderem o seu papel e, consequentemente, a sua classe. Ou muitas vezes abdicam desse papel por uma questão de sobrevivência imediata. Dessa forma, não se vislumbra grande futuro para as instituições culturais em Cabo Verde, a não ser cumprir a rotina instalada e desmantelar qualquer sinal de consciência crítica e propósito, intencionalmente.

Falando das condições em que as instituições culturais em Cabo Verde operam, particularmente no que respeita às condições humanas, financeiras e legais, é paradoxal que exista verba do Estado para financiar desde misses a galas e festivais de todo o tipo. Entretanto, não existe verba no orçamento que permita às instituições programarem de forma séria e com previsibilidade. A regulamentação do setor é deficiente ou tem começado pela rama. Como é que se justifica que instituições culturais a operar no país há mais de 20 anos não tenham um estatuto que as defina e crie bases legais para o seu pleno funcionamento, com equipas a trabalharem na precariedade? Os dirigentes não dizem nada porque estão ali para cumprir ordens.

Existe, de facto, uma estratégia financeira montada, mas essa destina-se à manipulação de consciências e ao silenciamento de vozes, que dependem dessa verba para viabilizar projetos individuais ou coletivos. É pena que não exista uma consciência de classe, pois se houvesse, esses atropelos e abusos de poder já teriam encontrado confronto e terreno sólido onde seria impossível permear. Nas ilhas de parcos recursos, cada um safa-se como pode e, neste ponto, não nos cabe julgar, mas apontar o mal. Felizmente, já não estamos em terra de cegos onde zarolhos se intitulam reis.

Na maioria dos países que encaram o papel das instituições de forma séria, o debate é sempre aceso e os dirigentes políticos não interferem na atividade ou programação das instituições, pois não é o seu papel. Dirigentes sérios não permitem ou fazem frente a esse tipo de intromissão. Ocupam os cargos porque, supostamente, estão devidamente preparados para tomar decisões em prol do setor, que no limite é quem os legitima. No caso de Cabo Verde, quando convém à classe política, estes criam perfis mirabolantes para justificar escolhas e a falta de preparo daqueles que nomeiam ou contratam para os cargos. Vão ainda mais longe, quando não lhes convém, recorrem a estratégias desesperadas e sorrateiras para tentar diminuir ou desacreditar os poucos que de facto têm um percurso e carreira comprovados. Assim não vamos lá, e é preciso e urgente combater estas práticas.

O papel dos políticos é desenhar as políticas públicas estruturantes, estabelecer prioridades para o setor, fazer luta política para as materializar e medir os resultados traçados. Não é intrometer-se nem policiar a prática corrente das instituições e amedrontar os dirigentes e as suas equipas. Muito menos num estado livre e de direito democrático como é o nosso. Cada ator no seu papel, de outro modo é uma perda de energia e desperdício de recursos financeiros, humanos e potencialidades do setor.

É tempo de endireitar a espinha dorsal enquanto setor e posicionar-se para um futuro que nos orgulhe, e que não nos envergonhe. Não se trata apenas do “hoje”, trata-se fundamentalmente do amanhã, que está a ser herdado pelos nossos filhos. É crucial que a classe adote uma postura que reflita os seus valores mais elevados.

Ainda sobre a importância de viver com integridade, propósito e comprometimento com os valores mais nobres, o filósofo americano Cornel West afirma: “It’s not about how to live but how to die”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1184 de 7 de Agosto de 2024. 

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Autoria:Irlando Ferreira,12 ago 2024 7:58

Editado porAndre Amaral  em  12 ago 2024 7:58

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