Sobre o centenário do nascimento de Amílcar Cabral

PorBruno Spencer,11 set 2024 16:05

​Amanhã, 12 de Setembro, comemora-se o centenário do nascimento de Amílcar Cabral, uma das grandes figuras da história de Cabo Verde. Pode-se até dizer que ocupa um lugar cimeiro na luta pela independência do nosso país.

No ano em que se assinala o centenário do nascimento de Amílcar Cabral, é sempre bom lermos, investigando e conhecendo outros factos sobre o nosso herói. Não podemos ficar agarrados à mesma cartilha porque isso cansa a uma pessoa e fica fastidiosa.

Um dos meus primeiros trabalhos na função pública, foi na Imprensa Nacional. É ali que eu soube que Cabral tinha trabalhado como aspirante enquanto aguardava pela bolsa de estudos para seguir para Portugal para fazer formação superior. Cheguei a trabalhar com alguns funcionários que tinham sido colegas dele, mas hoje estão todos mortos. Contaram-me que o homem era de fino trato, humilde e tinha outras boas qualidades. Tinha boa relação com o então Administrador da Imprensa Nacional, Dr. Bento Levy. Mesmo depois de ter ido para Portugal para fazer estudos superiores, sempre quando vinha a Cabo Verde, de férias, ia visitar seus antigos colegas.

Ficou na minha memória uma história que Mancalé, funcionário da instituição, me contou sobre Cabral. Quando Amílcar iniciou a luta armada, a PIDE (Policia Internacional da Defesa do Estado) antiga polícia política do regime salazarista, mandou pedir à Imprensa Nacional o processo individual de Amílcar Cabral. Mancalé foi incumbido de procurar o processo que estava nos arquivos e não estava fácil a sua localização. Perante a pressão da PIDE, um dia o Dr. Bento Levy chamou Mancalé e lhe disse: “Mancalé! Procure o processo de Amílcar Cabral porque eu não quero nada com essa gente!

Mancalé viria a encontrar o processo e a PIDE ficou mais tranquila. Eu pergunto agora onde se encontra o referido processo. Será que está na Torre de Tombo, em Portugal?

Lendo a história da África, Sekou Touré era um líder que apoiou muito as lutas pela independência dos países africanos que não se encontravam ainda independentes. Até o ANC (African Nacional Congress), da África do Sul, tinha apoio de Sekou Touré. Diz-se que Nelson Mandela, antes de ir à prisão, viajava com passaporte da Guiné-Conacri. Por ser um dos primeiros países africanos a tornar-se independente, soube aproveitar disso para apoiar a luta dos outros povos.

Mas temos também o lado mau de Sekou Touré. Foi um dos maiores ditadores da Africa, matou muita gente sobretudo quadros do seu país. O cinismo de Sekou era grande – chamava os seus colaboradores ao palácio, almoçava com eles, e no mesmo dia, saindo do palácio o colaborador era preso e enviado para temível prisão e de má memória, Camp Boiro. Do seu palácio, participava nas torturas aos presos para lhes arrancarem as confissões que pretendia. Amílcar Cabral estando na Guiné-Conacri deve ter usado muita habilidade para fugir aos horrores de Sekou Touré.

Para se conhecer bem a história de Sekou e da própria Guiné-Conacri, convido os leitores para irem ao You Tube escutar as conferências de imprensa dadas por um antigo colaborador de Sekou Touré, de nome Mamadou Barry. Ocupou altos cargos, nomeadamente Director da Rádio, também do Gabinete de Imprensa do Presidente. Viria a cair em desgraça e passou sete anos na prisão. Escreveu vários livros sobre o então regime que vigorava na Guiné-Conacri.

Barry fala-nos sobre Amílcar Cabral e do PAIGC. O mesmo nos fala dos 26 prisioneiros portugueses que foram capturados no decorrer da guerra colonial, diz que houve negociação para libertação dos mesmos. O regime português propôs dinheiro e Cabral aceitou, dizendo esse dinheiro seria investido em escolas, hospitais e outras infraestruturas nas zonas libertadas, mas as negociações não foram para frente por causa do não de Sekou Touré.

O mesmo Barry fala-nos de António Lobato, que era o prisioneiro mais antigo nas mãos do PAIGC. Cabral fazia regularmente visita a Lobato e lhe prometia a libertação se falasse na rádio, condenando o regime colonial português e apoiando a luta de libertação. Coisa que nunca Lobato fez, por isso continuou na cadeia.

A libertação total dos prisioneiros portugueses viria acontecer com 22 de Novembro de 1970.

Com o avanço da luta armada, os portugueses pensaram num plano que era desmantelar o PAIGC, no país onde recebia o apoio e tinha a sua sede principal: Guiné-Conacri. É assim que surge a chamada Operação Mar Verde. A operação foi traçada pelo Comandante Alpoim Galvão e com apoio do General António de Spínola, então Governador da Guiné portuguesa. A operação foi submetida a Marcelo Caetano, Presidente do Conselho de Ministros de Portugal. Este aprovou, mas com a recomendação de que não se deixasse nenhum vestígio na Guiné-Conacri que pudesse comprometer Portugal porque Guiné-Conacri era um país independente. Para se poder pensar que o que viria acontecer na Guiné-Conacri se tratava de um problema interno, Galvão contactou os opositores de Sekou Touré que viviam no exílio, arranjou-lhes armas, treinamento para irem derrubar Sekou Touré. Os opositores pertenciam ao partido Frente Nacional Libertação da Guiné. Os portugueses fixaram quatro objetivos da operação: primeiro, libertação dos 26 prisioneiros portugueses; segundo, destruir as infraestruturas do PAIGC, prendendo ou assassinando Amílcar Cabral; terceiro, atacar o Aeroporto destruindo os Migs que lá haviam; e quarto, ajudar os exilados a derrubar Sekou Touré.

Dos quatros objectivos, o mais bem-sucedido foi a libertação dos 26 prisioneiros. Embora tenham destruído algumas infraestruturas do PAIGC, a maioria dos objetivos não foi alcançada.

Ele diz que a agressão ou desembarque teve lugar no dia 22 de Novembro de 1970. Entretanto, Sekou Touré pediu a Amílcar Cabral que os prisioneiros portugueses fossem transferidos para Conacri, o que aconteceu no dia 9 do mesmo mês. Para ele, isso é estranho porque aconteceu dias antes de 22.

O mesmo dirigente diz que Sekou Touré semanas antes do dia 22, fez um discurso, dizendo que o país iria ser agredido.

Ainda segundo ele, os serviços secretos ocidentais tinham-lhe dito que a agressão iria ter lugar, embora os portugueses tivessem preparado a operação com o maior secretismo.

O mesmo Barry diz que Sekou Touré beneficiou com a Operação Mar Verde. Dizendo ser vitima, recebeu apoio da maioria dos países africanos, mesmo a da antiga Organização da Unidade Africana, OUA. Por outro lado, recebeu ajudas financeiras importantes da China e dos Estados Unidos da América.

Sekou Touré aproveitou o fracasso da operação Mar Verde para fazer limpeza no seio dos guineenses. Vários ministros foram acusados de colaboração, presos e executados, altos quadros foram presos, incluindo o próprio Barry.

“Se um dia for morto será por alguém do meu próprio partido”, disse Amílcar Cabral

Manuel Alegre, conhecido politico e escritor português, viveu na Argélia, durante o período da ditadura em Portugal. Na Argélia, ele e outros exilados portugueses tinham uma rádio onde faziam campanha contra o então regime que havia em Portugal. Alegre era amigo de Cabral e no seu livro “Memórias Minhas” conta que costumava encontrar-se com ele quer na Argélia, quer no Egipto.

Ora, num encontro entre Alegre e outro exilado português, Piteira Santos, com Cabral, este lhes disse: “Se um dia for morto será por alguém do meu próprio partido”.

A frase dita por Cabral diz nos que ele tinha pressentido a sua morte. Na verdade, quem atirou contra ele, assassinando-o, foi alguém do seu próprio partido. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1189 de 11 de Setembro de 2024.

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Autoria:Bruno Spencer,11 set 2024 16:05

Editado porClaudia Sofia Mota  em  5 out 2024 21:20

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