O contexto
Na crença de que “manhã ê más grande”, ao longo do ano 1999 verificaram-se algumas iniciativas potenciadoras da criação de uma Universidade em Cabo Verde no dealbar do século vindouro.
Destacaram-se as seguintes:
—No início do ano, foi publicado o Estatuto do Pessoal Docente do Ensino Superior (Decreto Legislativo n.º 1 de 15 de fevereiro de 1999), que estabeleceu a carreira académica – Professor Titular, Professor Associado, Professor Auxiliar, Assistente Graduado e Assistente – e determinou um enquadramento compatível com a exigência e a dignidade das funções a serem exercidas;
— Em abril, agosto e dezembro desse ano foram publicados, no Mindelo, os primeiros números do volume 1 da revista Anais da Academia de Estudos de Culturas Comparadas;
— Nos dias 27 a 30 de setembro realizou-se na Praia o Fórum sobre o Ensino Superior em Cabo Verde, com a participação de instituições de ensino superior e de entidades da cooperação internacional, onde se procurava uma visão estratégica e respostas à magna questão “que ensino superior para Cabo Verde?”;
— No dia 18 de outubro foi publicada no Boletim Oficial a Lei n.º 113/V/1999 que completou o ordenamento do sistema educacional (Lei de Bases do Sistema Educativo) com o aditamento de um articulado sobre o ensino superior (âmbitos universitário e politécnico, acesso, graus e diplomas). Esta lei veio legitimar por inteiro o ensino superior.
Fez-se, na época, um esforço notável para que os cabo-verdianos não continuassem a ser, uma sociedade sem universidade, que “não sabe em geral escolher modelos ou não aprendeu a escolher padrões de conhecimento relativamente comprovados (que tenham sido sujeitos à verificação e reprodutibilidade), ou sistemas de interpretação crítica adequadas, que possam impregnar, no longo termo, a cultura, mesmo, quotidiana, do cidadão comum” (vol. 1, 1, abril 1999 p. 5).
A Academia de Estudos de Culturas Comparadas – AECCOM
Em setembro de 1998, o Professor João Manuel Varela e um grupo de 22 “universitários” fundou no Mindelo, a Academia de Estudos de Culturas Comparadas – AECCOM, quando a universidade pública em Cabo Verde estava ainda em vias de conceção.
A novel instituição adotou uma perspetiva cultural de nível abrangente: comparar atitudes culturais e comparar atos criativos de culturas, incluindo a cultura política. A opção epistemológica pelos Estudos Comparados possibilitaria o conhecimento de distintos sistemas de educação, de cultura e da res publica (internacionais e da diáspora).
A Academia apresenta-se como “um espaço que propicia a reflexão em torno de três eixos fundamentais – as humanidades, a ciência e a tecnologia – sobre os quais gira primordialmente a vida das nações e dos povos, incluindo, é preciso sublinhá-lo sem hesitações, os que, como nós, procuram o seu lugar ao sol, um estatuto consequente no mundo moderno”. Com o estatuto de iniciativa privada, a AECCOM partiu de “pouco mais do que uma ideia” e desenvolveu um programa indutor do necessário debate público em prol de uma cultura-cidadã, como se comprova nas conferências e debates que promoveu e, em outras realizações, como os Prémios Micadinaia (Mindelo, na escrita ficcional de G. T. Didial) e a revista Anais (1999-2001) (vol. 1, 2, p. 6).
A revista Anais
A revista de investigação, dirigida pelo Professor e Escritor João Manuel Varela, cumpriu nos dois primeiros anos (1999 e 2000), com rigor, a periodicidade quadrimestral. O último número saiu em abril de 2001. Tratando-se de uma publicação científica prevalecem os temas de eleição da Academia de Estudos de Culturas Comparadas:
— Na secção «Cultura e Humanidades», num desdobramento temático, encontra-se produção científica nos domínios da Epistemologia (João Manuel Varela), da Sociologia Histórica (António Correia e Silva),da Antropologia Médica (João Manuel Varela), da Linguística (Manuel Veiga), da Linguística e Literatura (Perpétua Gonçalves - U. Mondlane, Maputo), da Sociologia Intercultural (Lígia Évora Ferreira e Dulce Almada), da Sociologia Religiosa (Saulo de Tarso C. Baptista - Universidade Federal do Pará, Brasil), da Filosofia (Jean Godefroy Bidima - Escola de Altos Estudos em C. Sociais, Paris) e da Filosofia e Cinema (Henriette Mbolle - Escola de Altos Estudos referida).
—Na secção «Cultura e Res Publica» assinalam-se textos de Politologia (José Vicente Lopes e Brazão Mazula - U. Mondlane, Maputo), de Economia (Manuel Varela Neves, João Estevão e Eduardo Sarmento Ferreira - U. Técnica de Lisboa), de Educação e Desenvolvimento (André Corsino Tolentino e João Manuel Varela), das Tecnologias (Ruy Spencer Lopes dos Santos, António Sabino, Vanda Marques da Silva Monteiro, João Manuel Varela, Sónia Merino, André Corsino Tolentino, Gui Menezes - U. Açores e Oksana Tariche, Mário Pinho, Ana Fernandes e Pedro Duarte) e de Ecologia e Desenvolvimento (Antúnio de Cássia Sousa Barbosa).
— A secção “Multiculturalidade e Diáspora” contem artigos de Lígia Évora Ferreira, Gabriel Moacyr Rodrigues e António Graça.
A temática literária está concentrada num “número especial” (vol. 2, 3, dezembro de 2000) que ostenta na contracapa um poema de João Vário. Compõem esse número duas partes: I - a primeira reporta à Mesa Redonda sobre Poesia Africana Contemporânea, realizada pela AECCOM no Mindelo, com um preâmbulo de J. M. Varela e comunicações sobre poesia de expressão lusófona (Alberto Carvalho, Universidade de Lisboa), poesia de expressão francófona (Babakar Sall, U. Paris X - Nanterre) e poesia de expressão anglófona (Chris W. N. Kirunda, University of Western Cape, South Africa); II - a segunda parte, sob o título “O acaso e o espírito” (G. T. Didial), reúne doze curtos textos de nótulas ou reparos estéticos dados a lume entre 1980 e 2000, de vários autores.
O Diretor da Revista
A revista Anais da Academia de Estudos de Culturas Comparadas foi concebida à imagem da obra científica do seu diretor, João Manuel Varela e da obra literária de João Vário.
Nela se projeta o Cientista e Professor Universitário [Médico pela Universidade de Lisboa, doutorado pela Universidade de Antuérpia, Professor e Investigador em Paris (microscopia eletrónica, histoquímica e bioquímica do sistema nervoso), em Amsterdão (neurobiologia molecular), em Estrasburgo (neuroquímica e neuroembriologia), em Londres (neuropatologia), Lovaina e Oslo (neuroanatomia), Bruxelas e Berlim (microscopia eletrónica)]1 e, por último, o Professor Titular de Citologia e Fisiologia Celular no Instituto Superior de Engenharia e Ciências do Mar – ISECMAR, no Mindelo.
Nela se projeta o Poeta e o Prosador, sob os heterónimos João Vário, T. T. Tiofe e G. Didial, para quem “a poesia sempre foi uma forma de pensar o homem; uma hermenêutica amiúde; uma casuística, por vezes”.2
O Prof. João Manuel Varela é autor da maioria dos artigos da revista que planeou e dirigiu. Escreveu textos que são referências para a história do ensino e da investigação, sendo de destacar o artigo «Uma Visão da Universidade de Cabo Verde. Breve Estudo Preliminar» (Vol. 1, 2, agosto 1999, pp. 45-74).
No dia 20 de abril de 2001 – Dia do Professor – analisou a situação do ensino em Cabo Verde, seus “regozijos, percalços e tribulações”3. Sem ter conseguido dar continuidade à revista Anais e à Academia de Estudos de Culturas Comparadase, a tantos outros sonhos e projetos, denunciou ter-se despendido muito dinheiro na organização de “conferências, ateliers, simpósios, workshops, mesas-redondas, de relevância um pouco discutível ou duvidosa”, concluindo: “fico com a impressão de que em muitos domínios, o meu país está numa brincadeira pegada”.
O Professor Titular do ISECMAR continua a depositar confiança no futuro dos seus alunos e confronta-os com a pergunta: “Não haverá, entre vós, jovens, quem acalente o sonho de ajudar esta nação a sair da cepa torta?”.
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1 As informações sobre a carreira científica de JM Varela foram por ele referidas em conversa com Michel Laban, 1992. In Cabo Verde: Encontro com escritores, II vol. Ed. Fundação Eng. António de Almeida, p. 464.
2 Idem, p. 471.
3 Artigo publicado no jornal A Semana, de 6 de julho de 2001.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1197 de 06 de Novembro de 2024.