A voz do outro lado da linha identificou-me de imediato, saudando-me como Lalela da Xanda da Nha Liza. Era uma chamada inesperada, mas cheia de propósito: dar os parabéns ao André de Nhô Gûste, meu amigo de infância. Desde o romper do dia, sentia essa vontade de o contactar, quase como se tivesse uma missão especial a cumprir hoje.
Uma pequena confusão entre a data oficial de registo e a verdadeira data de nascimento do André conduziu-nos, quase sem querer, a uma longa viagem pelas memórias que construímos ao longo de quase setenta anos. Ele, sendo seis meses mais velho do que eu, assumiu naturalmente o papel de guardião das nossas recordações partilhadas. O André é dono de uma calma que contrasta com o seu espírito juvenil: enquanto a sua voz pausada e risonha ecoava, era fácil recordar o rapaz destemido e briguento, sempre cheio de uma energia inesgotável, pronto para qualquer aventura.
Hoje, numa rara disposição, decidiu partilhar comigo uma história antiga, algo que nunca antes me revelara. Não havia amargura na sua voz, apenas a serenidade de quem já fez as pazes com o passado. Contou-me, com uma candura desarmante, que nunca conhecera a mãe. Tinha ele apenas seis meses de vida e ainda mamava quando ela o deixou sob os cuidados da Maia, uma amiga da zona, prometendo voltar em breve, depois de uma ida à Morada para fazer um mandado.
Essa promessa, contudo, nunca se cumpriu. Do cais da Alfândega, a mãe enviou um último recado à amiga, pedindo que cuidasse bem do filho, pois embarcaria para São Tomé e Príncipe como contratada. Era o ano de 1952, e as notícias que chegaram tempos depois confirmaram o que todos temiam: ela tinha morrido longe, numa terra desconhecida, sem nunca ter a chance de regressar.
André foi então entregue a Nha Benvinda, uma vizinha que assumiu a sua criação. Ela vivia numa casa modesta, duas ou três ruas atrás da nossa, numa fileira de casinhas baixas que, mais tarde, foram demolidas para dar lugar ao novo liceu.
O André só veio a descobrir a sua história mais tarde, já rapazinho, quase por acaso. Com seu temperamento aguerrido, recebia frequentemente advertências para evitar confrontos. Um dia, aconselharam-no a não brigar com o Calutcha de Nha Maia, dizendo-lhe que ele era seu ‘irmão de leite’. Em Cabo Verde, era comum que mães amamentassem filhos de outras numa rede de solidariedade entre as famílias mais pobres.
Aos nove anos, o André perdeu Nha Benvinda, tornando-se ‘órfão’ pela segunda vez. Mudou-se então para a casa de Nha Néné Grande, empregada de limpeza do Telegraph e mulher do seu pai. Viviam numa casa modesta, perto do cemitério inglês, numa rua por trás da nossa, e foi lá que o André permaneceu até aos dezassete anos, quando decidiu partir para a Holanda, fugindo ao serviço militar e à vida difícil que se vivia em São Vicente naquela época.
Deste lado da linha, houve um momento de silêncio. “Estás aí?”, perguntou ele, com uma leve hesitação. “Sim, estou”, respondi, sentindo o peso da história que acabara de ouvir. “Desculpa, fiquei a pensar no que me disseste, na tua história de vida. É realmente inspirador ver como enfrentaste provações que muitos não conseguiriam superar”.
O André, sempre o meu cúmplice em brincadeiras e peripécias, aproveitou a ocasião para desenterrar outra memória de infância. “Lembras-te de quando tínhamos cinco anos?”, perguntou, com uma voz misturada entre a doçura da lembrança e a alegria do reencontro. “Lembro-me como se fosse ontem,” disse ele, e contou a cena de nós, de cócoras, no passeio de Nha Néné de Virisse, fixando os olhos na casa da Dona Aurora, da Fábrica Favorita. Estávamos ansiosos, esperando ver chegar a cegonha que, segundo diziam, traria um meu irmãozinho.
Essas recordações, que misturam a inocência da infância e a esperança depositada em contos simples, fazem-me sorrir. Naquela manhã, notei que algo estava diferente no espaço onde sempre vivia e brincava: a porta da rua, que costumava estar escancarada, permanecia agora fechada. Estranhamente, não me deixavam entrar e sair à vontade, como era habitual nas eternas brincadeiras matinais. Pediram-me para ficar lá fora, sem acesso ao meu espaço tão familiar.
Mais tarde, lá pelas nove ou dez horas, chamaram-me para entrar. Foi então que recebi a notícia tão esperada: eu tinha uma irmãzinha! ‘Faquirinha, faquirinha, do tamanho de uma garrafa’, descreveu Mãe Liza, nossa avó, tentando traduzir o quanto ela era pequena e frágil.”
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1198 de 13 de Novembro de 2024.