Enquanto a formação especializada se refere a grupos determinados, e é neste sentido que dizemos estar a formar um engenheiro ou um mecânico, por exemplo, a filosofia pretende antes formar o ser humano. Hoje a perspectiva adoptada refere-se aos aspectos funcionais da nossa vida, ao como exercer uma actividade, mas não ao porquê dessa acção, aos fins. A tónica é colocada nos meios, com destaque para os recursos tecnológicos disponíveis, em detrimento das finalidades sociais, éticas ou axiológicas (referentes aos valores). Kant referia-se a um reino dos fins como ideal a prosseguir na sociedade, em vez de se visar apenas a funcionalidade ou utilidade imediata. Aristóteles visava o bem como finalidade ética pessoal e o bem comum como fim social, e Platão inicia uma reflexão sobre a justiça prosseguida hoje em filósofos como John Rawls, que trouxeram a filosofia, de novo, para o centro dos debates sobre política e sociedade. Esta “popularidade” da filosofia contrapõe-se ao pendor elitista e hermético que também marca a sua tradição. Trata-se de um dilema colocado desde os primórdios da reflexão filosófica: deveria ser reservada a uma elite, a uma aristocracia intelectual, como pensavam Pitágoras, Heraclito ou Platão, ou deveria ser acessível a todos e discutida na praça pública, como acontecia com Sócrates? Talvez a ideia de que a filosofia representa um saber inacessível às pessoas comuns derive da sua vertente mais elitista ou académica, ignorando a sua presença no espaço público. Ao contrário de temas “populares” como o desporto ou a informação geral, a filosofia parece actualmente ser um tema pouco mediático. Os media privilegiam os planos informativo e opinativo, mas o maior relevo é frequentemente dado às opiniões infundadas que circulam nas redes sociais, onde opiniões como a de a Terra ser plana são apresentadas como sendo científicas.
A formação de uma opinião esclarecida ou fundamentada era já um pressuposto da Enciclopédia da era Iluminista ou do Esclarecimento. A difusão do saber poderia avançar com os meios incomensuráveis actualmente ao dispor dos media, mas o projecto de uma emancipação pelo saber recua em relação à formulada pelas luzes. Da trilogia de valores a assumir pelos media, resta sobretudo o do entretenimento, dado que a informação e o papel formativo são comprometidos pelas notícias falsas ou factos alternativos. Contribuir para esclarecer a opinião não significa qualquer modo de doutrinação onde os media se substituam à reflexão autónoma dos leitores, mas colocar à sua disposição meios para melhor exercerem essa autonomia. É por isso que a filosofia pode assumir hoje um papel de relevo como lugar para um exercício do esclarecimento e do pensamento crítico, da maior importância no cumprimento da missão dos media: informar, formar e entreter.
A filosofia aproxima-se da ciência, no chamado positivismo, da religião, como auxiliar da teologia (papel desenvolvido sobretudo no mundo medieval, mas hoje reassumido pelo pensamento pós-secular), e da experiência vivida, com o existencialismo (ou filosofia existencial). Não representa um saber fechado em si mesmo, mas aberto aos outros modos de experiência e pensamento.Quanto aos seus modos de expressão, vão desde os fragmentos empregues por Heraclito e Nietzsche até às grandes construções sistemáticas que culminam com Hegel. Em tempos de pensamento único, nada mais indicado do que uma iniciação à pluralidade de modos de ver o mundo como a representada pela filosofia.
Contrariamente a uma concepção especulativa ou teórica da Filosofia, esta tem uma vertente prática ou aplicada presente em áreas como a Filosofia Política, do Direito, da Arte ou do Ambiente, para além do campo da Ética ou Deontologia Profissional,ligada a actividades como o ensino, a advocacia ou jurisprudência, a medicina, a investigação científica ou as ciências ambientais. Quando deixamos de limitar as exigências profissionais aos aspectos técnicos para passarmos ao campo dos valores, passamos a uma perspectiva filosófica, assumida pelo campo da Ética e Deontologia Profissional tornada na base para a elaboração dos Princípios ou Códigos Deontológicos presentes como exigências de muitas actividades basilares nas sociedades contemporâneas, como as ligadas ao ensino, à saúde ou ao direito.Distintas da actividade sindical, as Ordens (como a Ordem dos Médicos ou a dos Advogados) representam a procura de que os princípios ético-deontológicos sejam observados. A preocupação com o ethos profissional representa uma retomada da preocupação com os valores no trabalho, um retorno da filosofia ao campo do agir quotidiano.
A Filosofia corresponde a uma busca inacabada (Popper) ou uma tarefa infinita (Husserl, por isso a evocação de algumas figuras e ideias destacadas na sua história e emergência actual visa somente assinalar alguns marcos desse percurso histórico e contemporâneo. O leitor pode partir destes artigos para fazer a sua própria interpretação dessas ideias, conforme o ideal Kantiano de pensar por si próprio (Sebstdenken) e de ousar saber (Sapere Aude!). O espaço das humanidades, integrado pela filosofia, não é antagónico em relação ao das ciências e tecnologias, mas ambos se complementam, na procura de uma orientação para a vida pessoal e social. Num tempo de meios de orientação tão sofisticados como o GPS, falta-nos porventura uma bússula ética como orientação para a existência, que é a finalidade visada pelo pensamento filosófico.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1199 de 20 de Novembro de 2024.