Os Primórdios do Pensamento Filosófico

PorCarlos Bellino Sacadura,13 jan 2025 7:31

A questão que forma o núcleo do pensamento dos primeiros filósofos foi a da ordem e origem do Cosmos, Universo ou Natureza – daí terem sido considerados como Filósofos da Natureza e terem como tema a Cosmologia – saber que se ocupa da estrutura do Universo – e a Cosmogonia - saber acerca da origem do Universo. Ficaram conhecidos como pré-socráticos – anteriores a Sócrates – e integrantes do chamado período cosmológico do pensamento filosófico.

Embora a resposta a estas questões tenha evoluído com o tempo, as perguntas colocadas pelos primeiros filósofos continuam a interpelar-nos até hoje. Como começou tudo? Haverá uma razão e uma ordem na Natureza? E qual a posição do ser humano no Universo? Da multiplicidade que os nossos sentidos percebem no mundo, os filósofos pré-socráticos remontaram a um primeiro princípio ou elemento primordial que estava na origem do Universo – o arquê. Para Tales – o primeiro dos pré-socráticos, e integrante da Escola de Mileto (século VI - V a. C.), na Jónia (Ásia Menor), juntamente com Anaximandro e Anaxímenes, o arquê era a água: diz-se que esta ideia lhe veio depois de uma viajem ao Egipto, onde as colheitas e toda a vida dependiam das águas do Nilo, rio que tornava as terras desérticas em férteis terrenos produtivos – o Egipto é um dom do Nilo, como escreveu Heródoto. O elemento que circunda as ilhas, como no caso de Cabo Verde, é também a água, que parece não ter fim quando observada a partir das praias e dos portos que integravam a Grécia Antiga, o que pode explicar a escolha deste elemento como originário.

Esta preocupação com o Universo levou Diógenes Laércio – uma espécie de biógrafo e cronista dos filósofos antigos – a contar um incidente (talvez lendário) no qual Tales, com os olhos postos nos céus, teria caído a um poço, provocando o riso de uma mulher que passava. Este seria um dos primeiros episódios a propor uma imagem dos filósofos como seres desligados dos assuntos quotidianos. Contudo, a vida de Tales contraria esta perspectiva porque, além de astrónomo e geógrafo, era também engenheiro. Anaximandro, que considerava o ilimitado ou indefinido (apeiron) como arquê, também é creditado como hábil autor de mapas e de engenhosas estruturas de índole matemática e geométrica propostas para entender o mundo, antecipando algumas das ideias de Pitágoras.

Estas concepções dos pré-socráticos representam uma revolução quando comparadas com as interpretações do mundo na mitologia, onde eram os deuses a comandar os fenómenos naturais, com Zeus a actuar nos céus e Poseidon nos mares. Mas considerá-los como cientistas é um anacronismo: sem dúvida que eles conceberam o que hoje chamaríamos hipóteses ou conjecturas como teorias para compreender o Universo, mas não dispunham do método experimental que pudesse comprová-las como válidas ou rejeitá-las em função dos dados obtidos pela observação. Por outro lado, os actuais critérios de demarcação entre o pensamento científico e outras formas de entender o mundo não ocorriam com os pré-socráticos: as suas teorias incluíam, sem separação, perspectivas ligadas à ciência, à filosofia e à religião. Embora Aristóteles os tivesse considerado como fisiólogos – aqueles que estudam a Physis (Natureza) – e não filósofos, que investigam a realidade para além da Natureza (a meta-ta-physys, ou seja, a metafísica), eles já tinham uma inquietação metafísica na sua busca das origens de todas as coisas e dos princípios primeiros.

Com a divisão dos domínios do saber em múltiplas áreas especializadas parece hoje inviável pensar conjuntamente o ser humano e o Universo, como fizeram os pré-socráticos, mas Bergson fê-lo na sua A Evolução Criadora. Por sua vez Heidegger reconhecia-os como os que primeiro colocaram a questão do Ser ou ontológica, que ficou esquecida desde que se passaram a estudar os seres ou entes particularizados. Para os pré-socráticos, a compreensão do ser humano estava incluída na do Universo: este é visto como um microcosmos (pequeno Universo) dentro do macrocosmos (grande Universo).

Entre os mais influentes pré-socráticos encontramos Parménides de Eleia (Itália) fundador da Escola Eleática. Ele lançou os fundamentos da lógica – a arte de pensar correctamente – do método, da Ontologia (ciência do Ser), e da distinção entre ciência (epystéme) e opinião (doxa). Parménides afirmava que podemos seguir duas vias: a da opinião, do não-Ser, do movimento, ou da ilusão, obtida através dos sentidos, e a da verdade (aletheia), da ciência (epystéme), da permanência ou do Ser, alcançada apenas pelo pensamento. Antecipando Platão, afirmava que o tempo, o movimento, a visão, audição ou tacto são ilusões a que os nossos sentidos conduzem; a realidade e a verdade pertencem ao pensamento de um Ser imóvel, intemporal e invisível. Ao contrário do empirismo, que se liga ao senso comum acreditando que é real aquilo que percepcionamos, para Parménides Ser e Pensar, realidade e razão correspondem-se. A lógica de Parménides é formal ou da identidade: o Ser é, o não-Ser não é – uma coisa não pode ser ela mesma e outra ao mesmo tempo.

Heraclito de Éfeso não elaborou uma lógica da identidade nem considerou a realidade como imóvel, mas contrapôs-se a Parménides ao propor uma lógica dialéctica ou da contradição, onde os opostos opõem e complementam, e o mundo está em movimento ou devir, motivo porque, conforme o seu fragmento mais célebre, não nos podemos banhar duas vezes nas mesmas águas de um rio (o rio é uma imagem ou metáfora usada para ilustrar o tempo, a mudança), porque a realidade é um fluxo ou transformação contínua. O mundo não é um estado de coisas ou uma permanência, mas um processo transformador. Filósofos do tempo, mudança ou processo, como Hegel, Bergson ou Whitehead retomaram as ideias de Heraclito.Demócrito de Abdera considerou que o arquê ou elemento primordial era o átomo (que significa indivisível). Sendo o átomo a mais pequena partícula do Universo, a união ou desunião entre os átomos que se movem no vazio explicava a formação de todas as coisas. Para Pitágoras de Samos, a estrutura do mundo reside nos números e na geometria que explicam a harmonia do Universo, mas esta concepção da linguagem matemática como aquilo em que o livro do Universo está escrito, conforme afirmaria Galileu, era para Pitágoras igualmente uma doutrina mística. Entre as ideias dos pré-socráticos, encontramos algumas que continuam a desafiar-nos ainda hoje, como a da possibilidade de haver inúmeros mundos, ou um multiverso, em vez de o nosso ser único.

Como começou tudo? Haverá uma razão e uma ordem na Natureza? E qual a posição do ser humano no Universo? 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1206 de 08 de Janeiro de 2025.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Carlos Bellino Sacadura,13 jan 2025 7:31

Editado pormaria Fortes  em  13 jan 2025 7:34

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.