Na verdade, ao longo da história da música algumas capas tornaram-se verdadeiras obras de arte, concebidas por artistas das mais diversas áreas, como fotografia, pintura e escultura. A influência dos artistas plásticos nas capas dos discos começou no final dos anos 50 e início dos anos 60, quando a arte visual passou a agregar valor à música. Algumas tornaram-se icónicas, como a célebre colaboração entre Andy Warhol e The Velvet Underground & Nico, ou a emblemática fotografia que estampa “The Köln Concert”, de Keith Jarrett, capturada com uma sensibilidade única que nos faz sentir o paraíso sonoro que Jarrett nos oferece.
Nos anos 90 e 2000, com o avanço da tecnologia, artistas digitais passaram a especializar-se na criação de capas de discos. Apesar do declínio dos CDs e vinis – que agora ressurgem, acompanhados até mesmo pelo renascimento das K7s – a importância da capa como veículo de expressão artística nunca desapareceu. Nunca desaparecerá, desde que o artista encare o seu trabalho como um todo e não como fragmentos musicais que se pode comprar por bocados.
Trabalhando em lojas de discos, pude testemunhar o impacto das capas no consumo musical. Muitos compradores eram atraídos pela capa e só então decidiam ouvir o disco. Também vi casos em que uma mudança de capa resultava em um aumento significativo nas vendas. Um exemplo marcante foi “Nos Morna” do nosso Ildo Lobo. Numa das edições, a capa não fazia jus à excelência musical do álbum. Era medíocre. Com uma nova edição e uma fotografia que melhor traduzia sua essência, o disco ganhou nova dimensão e alcançou um público ainda maior. Ainda com a mesma capa, e apenas pelo facto de ter passado do plástico da jewel-box para o papelão do digi-pack, mais ainda ganhou.
… Afinal, a primeira impressão também conta na música. Sempre contara, pois, como acima disse – há um todo numa obra…um todo.
Em Cabo Verde, há capas inesquecíveis. Mito e Zé Gomes contribuíram com artes visuais marcantes para álbuns dos Tubarões. Quase que diria: preciosos quadros. Já os discos dos Bulimundo também se destacam: a ilustração coerente de “Batuku”, cuja capa foi concebida pelo baterista Zé Augusto Timas, e os dois primeiros LPs: “Bulimundo” e “Djam Brancu Dja”, cuja fotografia contextualizava o grupo em Rotterdam sendo o segundo álbum na famosa Pracinha d’Quebrod... Rotterdam, onde foram gravadas as primeiras canções e, de certa forma, onde começou a história discográfica…e não só…no grupo. Em 2022, mais de 40 anos depois, o grupo recriou a mesma foto em um emocionante reencontro com sua história. A capa enquanto “arquivo de momentos” que se repetem décadas depois.
Além das capas individuais, vale ressaltar o papel das gravadoras. Algumas criam uma identidade visual coesa para toda a sua discografia, tornando-se referência estética. Exemplos notáveis incluem a ECM, cujas fotos transmitem a intensidade-paz das suas músicas. Os álbuns da série Rudy Van Gelder Studio, que evocam a atmosfera dos estúdios clássicos de jazz. A Putumayo, por sua vez, adotou ilustrações folclóricas como marca registada de seus lançamentos dedicados à música do mundo, aos palcos coloridos e cheios de sons dos cantos do mundo.
Em Cabo Verde, arrisco dizer – talvez mais por paixão do que racionalidade – que a Morabeza Records seguiu um caminho semelhante. Suas capas carregavam a identidade de músicos que se entregaram a uma gravadora robusta, comprometida com uma causa maior. Eram mais do que meras ilustrações: eram fragmentos visuais de um legado sonoro que atravessa gerações.
O LP “Cabo-verdianos na Holanda” – é uma das mais belas capas da nossa música.
Aproveitando estar a falar da nossa música, fica o elogio e exemplo de capas, que certamente nos dizem que a nossa indústria discográfica tem nas suas prateleiras muito pormenor guardado. Talvez seja preciso prestarmos mais atenção. Contudo, confesso que, na minha opinião, o cuidado que se tem tido com as capas discográficas: quer sejam físicas ou digitais – quase molduras onde o músico faz poses para uma bela foto, que tanto poderá ser de um disco ou de um cantinho da sua sala de estar num porta-retratos de plástico – é fraco.
Falava eu de capas que saíram, quase todas elas no princípio deste ano – ano este que me enche de esperança e quase-certeza com a quantidade de boa música tradicional que nos foi oferecida. A esta lufada de ar, voltarei na próxima crónica.
Falando então das capas, em meados do ano passado, o artistaSai Rodrigues, desenha a capa do grupo Sizal para o disco “Kamin di Prata”. Nele pormenores e símbolos dos temas do disco numa qualidade-ilustração a queSaijá nos habituou. Para o disco Cimbron Celeste do colectivo Acácia Maior (2023) a fotografia e concepção imagética deNuno Miranda e Vera Palminhafazem-nos sentir o ambiente da criança-nossa que corre-busca-explora em mood amor-astral do disco.
No final do ano (2024) duas enormes capas:
Legadu-liberdadi projeto das editoras inSulada e Matos Music, com a interpretação de Carlos Matos, sai em vinil 7” – onde o ambiente “papelão” das antigas gráficas (talvez de forte ligação à Morabeza Records – não esquecer que o disco homenageia duas figuras maiores da editora: Djunga de Biluca e Humbertona) – é relembrado. Nesta edição de sublinhar a participação de dois designers gráficos: Niko Matos que fez a capa exterior e concepção geral e Gualter Monteiro da GRM Works que faz a belíssima imagem da monofolha que vem no interior no álbum.
O colectivo Tereru propõe para o disco de Djinho Barbosa, imagem que nos sugere “infinitu”, emsons desenhados por cordas d’1 liberdadi infinitu e nos faz crer que “tem mas manhã”. Na sempre falsa-simplicidade do preto e branco a paisagem mostra profundidade (que parte da simplicidade), talvez a mesma procurada pelo músico n’1 son.
Ainda nas intensas cores do preto e branco o fotografo Hélder PazMonteiro empresta a sua já conhecida capacidade de encontrar o pormenor, numa fotografia-momento de Bertânia Almeida num vídeo digital onde a cantora canta os mistérios “di um cretcheu”.
Para terminar, Mário Lúcio fecha com chave de ouro. Numa composição que junta fotografia e digital, Filipe Melo, retrata na capa a década de 70. Numa foto do músico dessa altura, o designer acrescenta de forma magistral todo o ambiente dessa época, através de um cuidado e ajustado lettering. Com tudo isso remeteu-nos para a década mágica da música – os anos 70 – onde África e seus ritmos explodiam, ritmos estes que são tocados no (para já digital) “independance” de Mário Lúcio Sousa. Na verdade Filipe Mello já é nome-marca na área das imagens discográficas.
Assim, creio que os sinais são muitos. Espero haver estrada contínua na produção de uma das peças comerciais e conceptuais da informação discográfica – a capa.
Termino citando um dos melhores “professores” que tive:
“As capas de discos não são apenas embalagens, mas narrativas visuais que conversam com a música e com quem a ouve. São portais para histórias, emoções e identidades – verdadeiras obras de arte que contam muito mais do que imaginamos.”
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1213 de 26 de Fevereiro de 2025.