Os pensamentos grego e cristão tinham-se reunido, na Patrística, sob o signo do platonismo. Na Escolástica, que culmina em São Tomás de Aquino, os fundamentos teológicos continuam a assentar no cristianismo, mas a base filosófica passa a ser aristotélica.
Para se ultimar este projecto, foram essenciais as traduções do grego feitas por intelectuais cristãos e islâmicos, que permitiram no mundo medieval o acesso ao pensamento dos filósofos antigos, com destaque para Platão e Aristóteles. Os tradutores eram também comentadores, sem a conotação que este termo tem hoje, distinguindo o comentador do autor, estando o primeiro dependente dos textos comentados, e sendo o segundo criativo ou com um pensamento próprio: o comentário era ele mesmo um modo de reflectir e de “fazer filosofia”. Entre os comentadores dos textos aristotélicos a maior relevância foi assumida pelo filósofo islâmico Averróis, particularmente uma visão que lhe foi atribuída, a da dupla verdade: a da fé e a da razão. São Tomás retiraria dela a ideia de uma via própria para a investigação racional e para um conhecimento que inclua a “razão natural” e a experiência, sem subordinação à crença religiosa. Mas não podia admitir uma divisão da verdade, que é só uma. Assim, manteve a ideia de haver dois caminhos, o da fé ou da revelação, e o da investigação ou racionalidade, mas ambos convergindo em direcção à verdade. Estava assim aberto o caminho para o reconhecimento de uma autonomia da razão que viria a realizar-se na modernidade.
Tomás de Aquino repartiu-se entre a vida eclesiástica e a académica, ou entre a vocação religiosa e a intelectual. Mas não quis ascender na hierarquia eclesiástica, preferindo dedicar-se a uma vivência monástica tendo Cristo como modelo. A comunidade monástica dos irmãos na fé e a comunidade académica na Universidade foram o meio em que evoluiu intelectualmente e espiritualmente. Católico significa universal, e as Universidades formam uma rede global: tanto pela fé como pelo intelecto, São Tomás segue na via da universalidade. Entre as Universidades estabelece-se uma rede, com os estudantes a deslocarem-se para lá das fronteiras nacionais e a desenvolverem um primeiro modelo de globalização, também permitida pelo uso comum do latim como língua de comunicação do saber. Mas o centro académico mais relevante foi a Universidade de Paris, onde São Tomás exerceu duravelmente o seu magistério, depois de ter passado por Nápoles, Viterbo e Roma.
Não por acaso Alberto Magno, que abriu a via para são Tomás, designava Paris como a cidade dos filósofos, onde pontificavam os mestres (magister). Mas estes mestres diferiam dos do mundo antigo. A leitura, interpretação e ensino referem-se em primeiro lugar à Palavra divina transmitida nos Evangelhos e compreendida pela luz da fé, auxiliada pela razão. O ensino acompanha a pregação, e consiste na exegese dos textos sagrados. A Paideia grega, que ligava cultura e educação, precisa de um terceiro termo que a insere na mundividência cristã, aliando cultura, educação e espiritualidade. A vontade, tipicamente grega, de procurar explicar tudo por meio da razão, ignora os seus limites, enquanto a revelação cristã entende as razões do coração que transcendem a racionalidade e nos abrem a uma inteligência de Deus. A pedagogia da revelação não termina com um conjunto de conhecimentos ou respostas finais que esgotariam o saber, mas permanece um mistério que nos interpela sem cessar. Inteligir ou compreender o mundo era para os antigos o modo mais elevado do saber, A inteligência humana, sob a forma da filosofia, poderia tudo compreender, mas São Tomás proclama uma inteligência e uma ciência mais elevada do que a dos antigos filósofos: a inteligência da fé (intellectus fidei) e a ciência de Deus – a Teologia (inteligência do divino: Theos - Deus; Logia – ciência). O racionalismo e positivismo moderno afirma que a fé exclui a razão, substituindo-a pela crença, mas para São Tomás, e para a generalidade dos filósofos medievais, há uma inteligência daquilo em que se crê, uma inteligência da fé, tornada no objectivo da teologia: São Tomás reivindicará o valor e, para a comunidade dos crentes, a necessidade dessa investigação racional das “raízes” da verdade divina que constitui a teologia. (Marie-Dominique Chenu) A teologia pode ser considerada como uma forma de esclarecimento mas, enquanto o esclarecimento que caracterizaria o Iluminismo moderno virá a ser sobretudo um a tarefa de clarificação racional, a teologia cristã de São Tomás empenha-se em clarificare fidem (esclarecer a fé).
Quando hoje vemos uma insistência em afirmações unilaterais, sem qualquer debate, a circularem nos “media”, o método de discussão assumido por São Tomás no ensino e na investigação constitui uma aprendizagem do pensamento dialógico: propõe-se uma tese, seguindo-se os argumentos pró e contra essa tese, seguidos da conclusão estabelecida pelo mestre. O chamado “princípio do contraditório”, que consiste em ouvir as partes envolvidas num conflito, retoma esta ética da argumentação prosseguida pelo tomismo.
A procura de uma conjunção entre as vias da filosofia e da teologia, simbolizadas por Atenas e Jerusalém, continua hoje a formar as bases da nossa cultura e a reabrir as vias do esclarecimento racional conjugadas com a relação entre a existência humana e a transcendência divina.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1218 de 2 de Abril de 2025.