É inquestionável que o passado colonial deixou marcas profundas: estruturas de dominação, desigualdades económicas e traumas sociais persistem em várias sociedades africanas. Reconhecê-lo é necessário. No entanto, insistir nesse diagnóstico como ponto de chegada, em vez de ponto de partida, é um erro estratégico. A vitimização explica o passado, mas não constrói o futuro.
Pior do que a paralisia teórica é a sua consequência prática: a desresponsabilização interna. Tornou-se mais cómodo culpar o Ocidente do que confrontar os fracassos das nossas próprias lideranças, a corrupção endémica, a má gestão dos recursos, a fragilidade institucional, a negligência na educação e nos sistemas de saúde. Quando usada como escudo ideológico, a narrativa da vítima legitima a estagnação e perpetua um ciclo de dependência.
É aqui que entra um dos pontos mais negligenciados no debate sobre o futuro de África: a responsabilização interna. A governação não se mede apenas por boas intenções, mas pela qualidade dos programas de governo e pela execução dos orçamentos públicos. O caminho da prosperidade passa pela forma como os nossos governos arrecadam e gerem os recursos nacionais. Em muitos países africanos, os dirigentes ainda se comportam como donos do Estado. E, por falta de informação, grande parte da população acredita que o dinheiro público pertence ao governante, sem perceber que esses recursos resultam dos impostos pagos por todos.
Enquanto o cidadão comum não tiver consciência de que o Estado lhe pertence, e não exigir contas, a lógica da impunidade continuará a imperar. O progresso não está na quantidade de recursos, mas na forma como são usados. E essa escolha não depende de nenhuma potência estrangeira: é nossa. A ausência quase total de responsabilização interna em muitos contextos africanos deveria ser o centro do nosso debate político.
Não faltam exemplos de países que, também marcados por colonizações duras ou guerras traumáticas, conseguiram transformar-se em casos de sucesso económico e social. Singapura, após a saída do domínio britânico e separação da Malásia, escolheu o caminho da meritocracia, da educação e do combate à corrupção. A Coreia do Sul, devastada pela guerra e por um passado colonial japonês, tornou-se uma potência industrial ao apostar na tecnologia e no planeamento económico. O Vietname, após décadas de conflito e ocupação, reformou a sua economia com a política de Doi Moi e hoje é uma das economias emergentes mais promissoras da Ásia.
Na América Latina, o Chile e a Costa Rica demonstram que o progresso está ligado a lideranças lúcidas, instituições funcionais e políticas públicas orientadas para o bem comum. A Costa Rica, por exemplo, aboliu o exército em 1948 e concentrou os seus esforços em educação, saúde e sustentabilidade, tornando-se um dos países com maior qualidade de vida da região.
Importa, porém, sublinhar que África não está à margem desses caminhos de transformação. Existem países africanos que, mesmo com poucos recursos, começaram a construir modelos próprios de governação responsável. O Botswana, após a independência do Reino Unido em 1966, manteve uma democracia estável, investiu na educação e fez uma gestão exemplar dos seus recursos minerais, como o diamante com baixos níveis de corrupção e crescimento económico consistente. Cabo Verde, por sua vez, destaca-se pela estabilidade política, pelo respeito pelas instituições democráticas e pelos progressos na educação e na saúde, tornando-se um exemplo de boa governação em África, apesar da escassez de recursos naturais. Estes casos provam que a história não determina o destino e que a decisão de mudar é interna, corajosa e possível.
Há também efeitos psicológicos e culturais associados à vitimização. Ela alimenta o ressentimento, enfraquece a auto-estima colectiva e mina a capacidade transformadora da juventude africana. Mais grave ainda: impede África de se afirmar como agente proactivo e propositivo no cenário global. O mundo respeita quem propõe soluções, não quem repete lamentos.
Não se trata, evidentemente, de apagar a memória histórica ou suavizar o passado. Trata-se de recusar que esse passado nos condene a uma posição perpétua de inferioridade moral e dependência política. A verdadeira descolonização é, acima de tudo, intelectual e estratégica. Exige coragem para enfrentar os nossos próprios desafios e usar a memória como força crítica e não como prisão emocional.
A Europa não precisa de ser tratada como inimiga. Precisa, sim, de ser encarada com lucidez: reconhecer os erros do passado, sem que isso impeça a construção de parcerias maduras e horizontais no presente. A cooperação internacional deve assentar na responsabilidade mútua, e não em ressentimentos paralisantes.
Ser vítima pode explicar a história. Mas não pode, nem deve ser o projecto político de futuro para África. O continente precisa de um novo discurso, um discurso de consciência cívica, responsabilidade, construção e ambição. Só assim poderemos, com dignidade, sair da sombra da nossa dor e ocupar, com legitimidade, o lugar que merecemos no mundo."
Publicado no jornal publico.pt, em 25 de Maio de 2025.
Estudante de Relações Internacionais na Universidade de Aveiro
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1226 de 28 de Maio de 2025.