Descartes e a Filosofia Moderna

PorCarlos Bellino Sacadura,18 jun 2025 13:35

A dúvida cartesiana não é céptica ou um ponto de chegada, mas uma etapa provisória ou metódica no caminho para o conhecimento

Vimos ao longo da história da filosofia como esta evolui através de filiações que ligam os filósofos entre si, quer na qualidade de continuadores, quer na de críticos dos que os antecederam. Mas Descartes não pretende seguir ninguém, pretendendo antes estabelecer um novo ponto de partida, como se a filosofia estivesse a começar com ele e fosse necessário refundá-la em novos moldes. No início do Discurso do Método traça as etapas que o conduziram a este projecto, contando como primeiro procurou nos livros e mestres do pensamento as bases para a procura do conhecimento. Mas concluiu que os textos e ideias destes mestres contradiziam-se entre si, pelo que não podíamos chegar à verdade através deles. Insatisfeito com a leitura de livros, passou a ler no grande livro do mundo, ou seja, a viajar. Aprende-se algo visitando diversos povos e culturas, mas vemos que aquilo que é válido nuns é inútil noutros, não servindo assim as viagens como base para atingir um conhecimento com valor universal. Por fim, acabou por procurar em si mesmo, na sua reflexão autónoma, as sementes da verdade – e foi este caminho que se revelou seguro e válido.

À maneira de Sócrates, Descartes começa por reconhecer que não sabe nada. Então, em vez de aceitar as respostas dadas quanto ao conhecimento, à verdade ou ao Ser, vai de novo colocar as questões essenciais ligadas ao ser humano e ao mundo. Em vez de partir de um conhecimento estabelecido e seguro, Descartes parte da dúvida e da incerteza quanto ao que julgamos conhecer. Era por isso que questionava tudo o que aprendera ao frequentar o melhor ensino da sua época, o Colégio Jesuíta de La Flèche. A ciência moderna já destruíra as antigas certezas, quando Galileu confrontou o mundo observado pelo seu telescópio e o descrito na Física de Aristóteles. O Universo deixava de possuir uma alma do mundo, como o concebiam os antigos, para se tornar naquele silêncio dos espaços infinitos que atemorizava Pascal.

Uma vez colocado tudo em dúvida, diversamente dos cépticos, que concluem não ser possível o conhecimento ou a verdade, Descartes prossegue a sua investigação até encontrar uma certeza que lhe permita superar o cepticismo: a dúvida cartesiana não é céptica ou um ponto de chegada, mas uma etapa provisória ou metódica no caminho para o conhecimento. A função da dúvida é a de não aceitar nada como verdadeiro sem passar pelo exame da razão, ou seja, pôr em causa toda a autoridade, mesmo a dos livros ou dos mestres. E a primeira certeza alcançada depois de aplicado o crivo da razão crítica, a primeira afirmação certa, é a do eu como sujeito pensante, o cogito: penso, logo existo – cogito, ergo sum. Ao pensar que tudo é falso, eu, que o penso, tenho de ser algo existente (Descartes). Depois da certeza sobre a existência do ser humano como sujeito pensante, o itinerário do pensamento cartesiano passa a incidir sobre a existência de Deus, com Descartes a propor um argumento fundado na ideia de Infinito: se conseguimos conceber a ideia de Infinito, esta não pode ser algo imaginado por nós, porque somos seres finitos, mas algo existente ou real. Deus como Ser Infinito fica assim provado como o que nos ultrapassa ou transcende infinitamente, afirmação depois retomada por Lévinas, um outro filósofo do Infinito.

Após a etapa da dúvida metódica aplicada ao saber estabelecido ou herdado, Descartes vai radicalizar a dúvida, que passa a ser metafísica ou hiperbólica não incidindo agora apenas sobre o saber, mas sobre a própria realidade. A dúvida vai incidir sobre a própria existência do mundo, o que parece um absurdo, dado que acedemos a ele através das sensações, começando pela da visão. Mas quem nos garante que aquilo que percepcionamos não é como um sonho, e que quando pensamos estar acordados, continuamos a sonhar? Temos assim uma versão mais extrema da caverna platónica, onde se vêm apenas sombras ilusórias da realidade, mas não é posta em causa a existência do mundo: quem me garante que não há um génio maligno que me projecta imagens enganadoras, tomadas por mim como verdadeiras? Mas, sendo por essência ou definição bom e verdadeiro, Deus não me engana e garante a existência do mundo como realidade. Enquanto a forma habitual do conhecimento é a de uma relação entre sujeito cognoscente, e objecto conhecido, em Descartes parte-se do sujeito pensante para Deus, e deste para o mundo.

Entre as ciências, as mais confiáveis são a matemática e a geometria, que já Platão colocava como lema da sua academia: Que ninguém entre aqui se não for geómetra. Considerava que a aprendizagem da matemática tinha sido a mais útil na sua formação, como atesta no Discurso: Agradavam-me sobretudo as matemáticas, devido à evidência e certeza das suas razões. A física moderna tornara-se em física-matemática, com Galileu, mas Descartes foi mais longe: enquanto Galileu aplicava a matemática ao estudo da Natureza, Descartes usa-a para configurar o pensamento, em todas as áreas, ou seja, já não se trata de matematizar a física, mas de encontrar uma matemática universal (mathesis universalis) abrangendo todo o saber. Contra a imagem estritamente racionalista do filósofo, ele relata que este projecto de unificação das ciências, ou de uma ciência universal, surgiu-lhe em sonhos ocorridos em Novembro de 1619, onde lhe apareciam um dicionário, e um poema de Ausónio onde se lia Quod vitae sectabor iter? (Que caminho seguir na vida?). O dicionário simbolizava o conjunto das ciências que o filósofo pretendia unificar, e o verso indicava a busca de um método (caminho) para guiar a sua busca do saber, desenvolvido por ele nas Regras para a direcção do espírito e no Discurso do Método, onde enuncia como critério da verdade a clareza e a evidência. Partindo dos Primeiros Princípios axiomáticos ou evidentes para um encadeamento de razões de ordem dedutiva que conduzem do simples ao complexo.

Nos Princípios da Filosofia, Descartes apresenta o seu sistema, que compara a uma árvore na qual a raiz é a metafísica, o tronco a física, e os ramos a moral, a medicina e a mecânica. A metafísica é o fundamento de todo o saber, a luz divina que transcende ou está além do mundo físico. A física explica-se pela luz natural da razão matemática, e as outras ciências formam os ramos. Há três substâncias: a infinita, que é Deus, a extensão, que é a forma geométrica dos corpos materiais, e o pensamento. O ser humano é extensão, pelo corpo, e pensamento, enquanto mente (dualismo antropológico cartesiano).

Descartes não pretendeu que o seu método fosse seguido linearmente, mas que cada um procurasse por si próprio um caminho na vida e no pensamento, de modo livre e autónomo.

René Descartes: biografia, filosofia e principais ideias ...

Vimos ao longo da história da filosofia como esta evolui através de filiações que ligam os filósofos entre si, quer na qualidade de continuadores, quer na de críticos dos que os antecederam. Mas Descartes não pretende seguir ninguém, pretendendo antes estabelecer um novo ponto de partida, como se a filosofia estivesse a começar com ele e fosse necessário refundá-la em novos moldes. No início do Discurso do Método traça as etapas que o conduziram a este projecto, contando como primeiro procurou nos livros e mestres do pensamento as bases para a procura do conhecimento. Mas concluiu que os textos e ideias destes mestres contradiziam-se entre si, pelo que não podíamos chegar à verdade através deles. Insatisfeito com a leitura de livros, passou a ler no grande livro do mundo, ou seja, a viajar. Aprende-se algo visitando diversos povos e culturas, mas vemos que aquilo que é válido nuns é inútil noutros, não servindo assim as viagens como base para atingir um conhecimento com valor universal. Por fim, acabou por procurar em si mesmo, na sua reflexão autónoma, as sementes da verdade – e foi este caminho que se revelou seguro e válido.

À maneira de Sócrates, Descartes começa por reconhecer que não sabe nada. Então, em vez de aceitar as respostas dadas quanto ao conhecimento, à verdade ou ao Ser, vai de novo colocar as questões essenciais ligadas ao ser humano e ao mundo. Em vez de partir de um conhecimento estabelecido e seguro, Descartes parte da dúvida e da incerteza quanto ao que julgamos conhecer. Era por isso que questionava tudo o que aprendera ao frequentar o melhor ensino da sua época, o Colégio Jesuíta de La Flèche. A ciência moderna já destruíra as antigas certezas, quando Galileu confrontou o mundo observado pelo seu telescópio e o descrito na Física de Aristóteles. O Universo deixava de possuir uma alma do mundo, como o concebiam os antigos, para se tornar naquele silêncio dos espaços infinitos que atemorizava Pascal.

Uma vez colocado tudo em dúvida, diversamente dos cépticos, que concluem não ser possível o conhecimento ou a verdade, Descartes prossegue a sua investigação até encontrar uma certeza que lhe permita superar o cepticismo: a dúvida cartesiana não é céptica ou um ponto de chegada, mas uma etapa provisória ou metódica no caminho para o conhecimento. A função da dúvida é a de não aceitar nada como verdadeiro sem passar pelo exame da razão, ou seja, pôr em causa toda a autoridade, mesmo a dos livros ou dos mestres. E a primeira certeza alcançada depois de aplicado o crivo da razão crítica, a primeira afirmação certa, é a do eu como sujeito pensante, o cogito: penso, logo existo – cogito, ergo sum. Ao pensar que tudo é falso, eu, que o penso, tenho de ser algo existente (Descartes). Depois da certeza sobre a existência do ser humano como sujeito pensante, o itinerário do pensamento cartesiano passa a incidir sobre a existência de Deus, com Descartes a propor um argumento fundado na ideia de Infinito: se conseguimos conceber a ideia de Infinito, esta não pode ser algo imaginado por nós, porque somos seres finitos, mas algo existente ou real. Deus como Ser Infinito fica assim provado como o que nos ultrapassa ou transcende infinitamente, afirmação depois retomada por Lévinas, um outro filósofo do Infinito.

Após a etapa da dúvida metódica aplicada ao saber estabelecido ou herdado, Descartes vai radicalizar a dúvida, que passa a ser metafísica ou hiperbólica não incidindo agora apenas sobre o saber, mas sobre a própria realidade. A dúvida vai incidir sobre a própria existência do mundo, o que parece um absurdo, dado que acedemos a ele através das sensações, começando pela da visão. Mas quem nos garante que aquilo que percepcionamos não é como um sonho, e que quando pensamos estar acordados, continuamos a sonhar? Temos assim uma versão mais extrema da caverna platónica, onde se vêm apenas sombras ilusórias da realidade, mas não é posta em causa a existência do mundo: quem me garante que não há um génio maligno que me projecta imagens enganadoras, tomadas por mim como verdadeiras? Mas, sendo por essência ou definição bom e verdadeiro, Deus não me engana e garante a existência do mundo como realidade. Enquanto a forma habitual do conhecimento é a de uma relação entre sujeito cognoscente, e objecto conhecido, em Descartes parte-se do sujeito pensante para Deus, e deste para o mundo.

Entre as ciências, as mais confiáveis são a matemática e a geometria, que já Platão colocava como lema da sua academia: Que ninguém entre aqui se não for geómetra. Considerava que a aprendizagem da matemática tinha sido a mais útil na sua formação, como atesta no Discurso: Agradavam-me sobretudo as matemáticas, devido à evidência e certeza das suas razões. A física moderna tornara-se em física-matemática, com Galileu, mas Descartes foi mais longe: enquanto Galileu aplicava a matemática ao estudo da Natureza, Descartes usa-a para configurar o pensamento, em todas as áreas, ou seja, já não se trata de matematizar a física, mas de encontrar uma matemática universal (mathesis universalis) abrangendo todo o saber. Contra a imagem estritamente racionalista do filósofo, ele relata que este projecto de unificação das ciências, ou de uma ciência universal, surgiu-lhe em sonhos ocorridos em Novembro de 1619, onde lhe apareciam um dicionário, e um poema de Ausónio onde se lia Quod vitae sectabor iter? (Que caminho seguir na vida?). O dicionário simbolizava o conjunto das ciências que o filósofo pretendia unificar, e o verso indicava a busca de um método (caminho) para guiar a sua busca do saber, desenvolvido por ele nas Regras para a direcção do espírito e no Discurso do Método, onde enuncia como critério da verdade a clareza e a evidência. Partindo dos Primeiros Princípios axiomáticos ou evidentes para um encadeamento de razões de ordem dedutiva que conduzem do simples ao complexo.

Nos Princípios da Filosofia, Descartes apresenta o seu sistema, que compara a uma árvore na qual a raiz é a metafísica, o tronco a física, e os ramos a moral, a medicina e a mecânica. A metafísica é o fundamento de todo o saber, a luz divina que transcende ou está além do mundo físico. A física explica-se pela luz natural da razão matemática, e as outras ciências formam os ramos. Há três substâncias: a infinita, que é Deus, a extensão, que é a forma geométrica dos corpos materiais, e o pensamento. O ser humano é extensão, pelo corpo, e pensamento, enquanto mente (dualismo antropológico cartesiano).

Descartes não pretendeu que o seu método fosse seguido linearmente, mas que cada um procurasse por si próprio um caminho na vida e no pensamento, de modo livre e autónomo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1228 de 11 de Junho de 2025.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Carlos Bellino Sacadura,18 jun 2025 13:35

Editado porAndre Amaral  em  18 jun 2025 13:35

pub.
pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.