A questão aparentemente não faz muito sentido considerando que ninguém disputa a independência e celebra-se o dia nacional com alegria de ser ter um país que vive na liberdade e com o orgulho de quem sabe que o povo soberano escolhe os seus governantes, há pluralismo, separação de poderes e o primado da Lei, e a justiça é assegurada por tribunais independentes. Quando repetida todos os anos a pergunta só faz sentido se é, de facto, um convite para, por um lado, se validar o processo de há 50 anos que desembocou na independência e, por outro, para justificar a ditadura de partido único que foi formalmente implantada no dia 5 de Julho.
Devia ser evidente que os objectivos no dia nacional de celebração da unidade da comunidade nacional à volta dos princípios e valores compartilhados são prejudicados quando o foco é posto no processo que atropelou direitos políticos de muitos, levou à prisão e deportação de outros e impediu que a generalidade da população pudesse livremente decidir sobre o seu futuro e o destino do país. Também não se pode ignorar que reabrem-se as feridas e cavam-se mais as fracturas na sociedade e nas instituições quando com essa questão “se a independência valeu a pena” se força as pessoas a aceitar a justificação que a ditadura era necessária em 1975 para depois houvesse uma abertura em 1990. Neste quesito nem se refreia de usar argumentos similares aos da época colonial de que era preciso dar tempo para que os povos se tornassem maduros para a independência. Não se tem pejo em afirmar que depois da independência são precisos anos de ditadura antes de se "abrir" a porta da liberdade e democracia ao povo.
Com o pretexto da necessidade de preservação da memória histórica, repete-se mais um acto que só teria sentido nos tempos da ditadura. Despeja-se integralmente a historiografia oficial do PAIGC como se tratasse de uma operação de agitprop (agitação e propaganda). Nas homenagens faz-se a idolatria dos combatentes da liberdade da pátria que, como se pode ver em várias cerimónias públicas, são os mesmos que vieram da Guiné em 1975 e protagonizaram a ditadura do partido, ficando alguns outros combatentes a fazer de pano de fundo. Não se sabe onde fica o resto da história do país, do seu povo e das suas personalidades como se tudo tivesse iniciado nas matas da Guiné. Na prática, ignora-se, distorce-se e cooptam-se pedaços da história para servirem de precursores da “luta de libertação”. Claro que aqui não há nada de novo quando a perspectiva imposta é a de um partido de vanguarda que forja nações mesmo a mil quilómetros de distância do território pátrio.
O problema é como isso pode acontecer numa democracia com pluralismo de pontos de vista, espírito livre e crítico e comprometimento com a verdade, sem que também as suas instituições sejam abaladas. No dia 17 de Julho, as Forças Armadas de Cabo Verde resolveram aderir ao esforço de preservação da memória histórica com uma conferência destacando os rostos da ditadura, notando-se a ausência do Presidente da República e do Governo. A data escolhida foi a do juramento de bandeira dos primeiros soldados incorporados nas Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) que, como disse o então primeiro-ministro Pedro Pires, no seu discurso nesse dia, era um exército de revolucionários, de militantes do partido e que pertencia à mesma organização das FARP na República da Guiné-Bissau. A grande questão que se coloca é que particularidade da memória histórica é que as Forças Armadas de Cabo Verde apartidárias, defensoras da ordem constitucional e da independência do país, pretendem preservar com esse acto e eventualmente que mensagem querem passar.
Um dos princípios fundamentais das democracias é a subordinação das forças armadas ao poder civil democraticamente legitimado. Com isso, assegura-se o monopólio da violência do Estado e garante-se que o seu comando está sob quem tem legitimidade para o exercer no quadro estrito da legalidade democrática. Não se trata, portanto, de uma “milícia” ou de um braço armado do partido, para garantir, como dito no acima citado discurso, que tem que haver nesta terra disciplina e respeito pela Direcção do partido. Como baluarte da ordem constitucional e protector dos direitos fundamentais dos cidadãos, as FA não podem tomar como exemplo um exército cujos quartéis serviram em várias ocasiões (1977, 80, 81) de prisão e lugares de tortura e se viu envolvido na morte violenta de civis (1981). Proibidas de actividades políticas, as FA não deviam rever-se em dirigentes/comandantes instituídos por decreto do regime anterior que, reclamando-se da “luta de libertação”, legitimava a ditadura em Cabo Verde.
A última coisa que uma democracia precisa é de forças armadas a se verem anterior à república ou acima do Estado com base em alguma narrativa, seja da revolução do 25 de Abril em Portugal, de manter secular a república turca, de combater a corrupção em África ou de alguma luta armada. Para evitar esse tipo de situações é que, por exemplo, na Bélgica, o dia nacional, que anteriormente se comemorava a 27 de Setembro, dia da expulsão dos holandeses, passou para 21 de Julho que foi da entronização do rei após o juramento da lealdade à Constituição. Liberdade e responsabilidade caminham juntas em democracia e claramente que era de exigir a todos, que de uma forma ou de outra, são parte da história do país, o respeito pela ordem constitucional validada várias vezes nos últimos trinta e cinco anos pelo voto livre e plural de todos os cabo-verdianos.
O país pode estar num período pré-eleitoral e as lutas políticas mais aguerridas. Tem que haver, porém, consenso quanto aos fundamentos da república. A orientação futura da governação pode estar em discussão e é pela política que se vai traçar um caminho para a encontrar. Não é pela desestabilização das instituições, pelo instigar de lutas corporativas e pelo recurso a figuras míticas, personalidades e partidos providenciais, que se vai poder ponderar a complexa situação nesta fase de desenvolvimento, evitar as armadilhas e mobilizar as vontades para as reformas necessárias.
O discurso algo histriónico que se vem tornando norma, ampliado pelas redes sociais, mas cada vez mais assumido pelas forças políticas, tende a penetrar em todo o lado. Fustiga-se a justiça, agita-se nas escolas, desespera-se nos transportes e até às forças armadas quer-se incentivar o envolvimento em decisões estritamente políticas. O crescimento dos extremismos em todo o mundo devia servir de uma nota de cautela, mas afinal não é, como se pode comprovar em resultados sucessivos das eleições em diferentes países.
Provavelmente nem os seis meses das mudanças de Donald Trump, consideradas inacreditáveis até há pouco tempo, constituem choque suficiente para outros países se esquivarem de certas derivas complicadas. Cabo Verde também parece susceptível ao fenómeno. Aqui também há quem não mostre muita preocupação se, provocando reacções emocionais extremas perante todo e qualquer problema, não se acabe por tirar qualquer possibilidade de diálogo e de uma ponderação serena dos problemas do país. Infelizmente, os dias nacionais, que deviam cimentar o consenso para o dissenso poder prosseguir sereno e construtivo, são sequestrados nas tentativas de acerto de contas com a decisão do povo de viver livre e trabalhar para sua própria prosperidade e felicidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1234 de 23 de Julho de 2025.