Cabo Verde e o Futuro Energético: Transformar Lixo em Luz na Ilha de São Vicente

PorJAMES SILVA RAMOS,11 ago 2025 11:54

JAMES SILVA RAMOS - M.Sc. Engenharia Estrutural/Project Manager de fabrico de máquinas mecatrónicas - Indústria de semicondutores
JAMES SILVA RAMOS - M.Sc. Engenharia Estrutural/Project Manager de fabrico de máquinas mecatrónicas - Indústria de semicondutores

Na Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, confrontamo-nos com uma realidade profundamente desconcertante, pela sua inaceitabilidade ambiental, num momento de concertação de todas as vozes à escala mundial sobre as alterações climáticas: todo o lixo de S. Vicente continua a ser “tratado” — se assim se pode chamar — por incineração a céu aberto, um método rudimentar, obsoleto e altamente contributivo para os problemas ambientais que se avizinham a passos largos com todas as implicações graves para a saúde pública.

Parte I

Paralela e consequentemente, deixamos um grito de alerta para os responsáveis da governação em todas as ilhas de Cabo Verde e à falência técnica das lideranças locais no que concerne à inovação e à resolução das problemáticas sociais de suma importância daí advenientes.

Este artigo destina-se a contribuir para a melhoria e ultrapassagem deste imbróglio ambiental, apresentando os prolegómenos de um projeto destinado à construção da dinâmica de resolução desta problemática situação atentatória ao ambiente, buscando a sua conversão em benefício energético.

Enquanto filho da terra — um verdadeiro Mucim de Soncente, de corpo, alma e espírito — e sustentado pela minha formação académica e experiência profissional, proponho, com base numa abordagem científica e tecnológica, uma viragem paradigmática: transformar o lixo em recurso, apostando numa solução já longamente validada e internacionalmente consolidada — a tecnologia Waste-to-Energy (WtE).

Desenvolvida no final do século XIX e aperfeiçoada ao longo do século XX, esta tecnologia tem demonstrado ser não apenas fiável, mas economicamente viável, permitindo transformar resíduos sólidos urbanos em energia útil, de forma ambientalmente responsável. A sua implementação em São Vicente seria um passo decisivo rumo à sustentabilidade, à justiça inter-geracional e à dignidade ambiental que a nossa ilha merece. Assiste-se igualmente uma tendência positiva de crescimento da implementação desta tecnologia no nosso continente, liderada pela Etiópia, desde 2018. (Payton, 2025)

1.Waste-to-Energy: Génese e evolução:

“Introdução ao Waste-to-Energy (WTE)

A tecnologia de transformação de resíduos em energia (WtE) surgiu no final do século XIX, utilizando a incineração de resíduos para gerar calor e, posteriormente, eletricidade. Ganhou destaque no século XX por oferecer uma solução dupla: gestão de resíduos sólidos e produção energética.

No século XXI, os incineradores tornaram-se tecnologicamente avançados, com sistemas de filtragem de gases, monitorização, recuperação de calor e gestão automatizada de resíduos. Estes avanços tornaram o processo mais eficiente e ambientalmente seguro.

Hoje, existem mais de 2.200 instalações WtE no mundo, especialmente na Europa e Ásia Oriental, impulsionadas pela necessidade de melhorar a gestão de resíduos e aumentar a produção de energia renovável, reduzindo a dependência de combustíveis fósseis e as emissões de CO₂ (Makarichi, Warangkana, & Kua-anan, 2018), (Geosyntec Consultants, 2019).

Ainda, de acordo com o Estado-da-Arte, cerca de 85% do lixo produzido por uma cidade com mais de 70 mil habitantes (exemplo dado de acordo com a realidade dos E.U.A) é passível de ser queimado numa incineradora de WTE e a taxa de redução de volume de resíduos sólidos urbanos ascende aos 87-90%. (Association, 2024)

2.Geração de Energia

O vapor necessário para a geração de eletricidade a partir de biomassa/resíduos pode ser produzido por diversas rotas termoquímicas, tais como combustão direta, gaseificação acoplada ou pirólise seguida de combustão dos gases e bio-óleos gerados, bem como pela queima de biogás proveniente da digestão anaeróbica de resíduos orgânicos. Estas tecnologias permitem converter a energia química armazenada na biomassa em calor, que é então utilizado para aquecer água em uma caldeira de alta pressão, produzindo vapor. (Arena, 2011)

Esse vapor alimenta um Ciclo de Vapor de Rankine (CVR), um ciclo termodinâmico amplamente empregado para a conversão de energia térmica em eletricidade. O ciclo inicia com a geração de vapor saturado em caldeiras operando tipicamente entre 20 a 100 bar, dependendo do tipo de biomassa/ resíduos sólidos urbanos e da arquitetura térmica adotada. Esse vapor passa por um superaquecedor, que o eleva a temperaturas entre 350 °C e 540 °C, transformando-o em vapor superaquecido — condição essencial para maximizar a entalpia de expansão e, consequentemente, a eficiência do sistema (Çengel & Boles, 2015).

A expansão do vapor ocorre em uma turbina a vapor, onde a energia térmica é convertida em energia mecânica no eixo, accionando um gerador síncrono ou assíncrono. Após a expansão, o vapor remanescente é condensado num condensador operando sob vácuo parcial (geralmente entre 0,03 e 0,1 bar), sendo o condensado bombeado novamente para a caldeira, fechando o ciclo de Rankine.

A eficiência térmica do CVR está limitada pelo segundo princípio da termodinâmica, sendo fortemente dependente da diferença entre a temperatura de entrada da turbina (fonte quente) e a do condensador (fonte fria). Em instalações de WtE convencionais, a eficiência elétrica líquida situa-se geralmente entre 26% e 30%, podendo alcançar até 35–38% quando operando em condições termodinâmicas mais elevadas (pressões acima de 80 bar e temperaturas superiores a 500 °C) e com o uso de tecnologias como reaquecimento e regeneração (Demirbaş, 2001).

A relação direta entre a pressão e temperatura do vapor e o desempenho do ciclo faz com que o uso de condições de operação avançadas seja vantajoso do ponto de vista da eficiência energética, desde que compatível com os limites dos materiais das caldeiras e turbinas e os custos de capital e manutenção associados (Stultz & Kitto, 1992) (Saidur, Abdelaziz, Demirbas, Hossain, & Mekhilef, 2011) (K.Funnk, J.Milford, & T.Simpkins, 2013)

Pelo exposto acima, pode-se depreender facilmente que três graves e prementes problemas seriam de imediato resolvidos com uma estação de WtE, nomeadamente:

  • Diminuição significativa da superfície necessária para armazenamento provisório dos resíduos;
  • Emissão de gases para a atmosfera: A prática ainda comum de queima a céu aberto gera elevadas emissões de fumos tóxicos, incluindo dióxido de enxofre (SO₂), monóxido de carbono (CO), óxidos de nitrogênio (NOₓ) e partículas finas (PM10 e PM2,5), altamente prejudiciais à saúde pública e ao meio ambiente. (Mannan Zafar, 2024). Pela quantidade de lixo diariamente depositado na lixeira Municipal do Mindelo, na ordem das 50 toneladas nos dias de hoje (Kaza, Yao, Bhada-Tata, & Woerden, 2018), depreendida pela produção de lixo per/capita, deduz-se linearmente uma emissão de gases e partículas nocivos, na ordem dos 200 m3/h (Sivertsen, 2006) durante o processo de incineração controlada.
  • Produção de energia eléctrica proveniente de uma fonte primária practicamente gratuita e constante que inclusivamente poderia também ser utilizada para dessalinização de água para rega, beneficiando as zonas limítrofes de Ribeira de Vinha, Ribeira de Julião e ainda “quilómetro cinco/seis”, onde a agricultura já é praticada.

Ainda, como sub-produto utilizável, pós-processamento, temos as cinzas que tanto podem ser utilizadas como fertilizantes, bem como filler para agregados de construção civil (betão e emulsões betuminosas) diminuindo directamente o impacto da indústria de extracção de inertes e alavancando ainda mais a viabilidade financeira do investimento (Wiles, 1995) (Jala & Dinesh, 2006).

Os restos ferrosos, se não sujeitos a uma triagem prévia à incineração, poderiam ser recuperados com utilização de electro-íman alimentado por uma turbina eólica ou parque fotovoltaico, e posteriormente fundidos localmente para fabrico de peças várias ou comercializado para o exterior como matéria-prima industrial (Syc, Simon, Braga, & Hyks, 2020).

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1236 de 6 de A de 2025.

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Autoria:JAMES SILVA RAMOS,11 ago 2025 11:54

Editado porAndre Amaral  em  11 ago 2025 11:54

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