Parte I
Paralela e consequentemente, deixamos um grito de alerta para os responsáveis da governação em todas as ilhas de Cabo Verde e à falência técnica das lideranças locais no que concerne à inovação e à resolução das problemáticas sociais de suma importância daí advenientes.
Este artigo destina-se a contribuir para a melhoria e ultrapassagem deste imbróglio ambiental, apresentando os prolegómenos de um projeto destinado à construção da dinâmica de resolução desta problemática situação atentatória ao ambiente, buscando a sua conversão em benefício energético.
Enquanto filho da terra — um verdadeiro Mucim de Soncente, de corpo, alma e espírito — e sustentado pela minha formação académica e experiência profissional, proponho, com base numa abordagem científica e tecnológica, uma viragem paradigmática: transformar o lixo em recurso, apostando numa solução já longamente validada e internacionalmente consolidada — a tecnologia Waste-to-Energy (WtE).
Desenvolvida no final do século XIX e aperfeiçoada ao longo do século XX, esta tecnologia tem demonstrado ser não apenas fiável, mas economicamente viável, permitindo transformar resíduos sólidos urbanos em energia útil, de forma ambientalmente responsável. A sua implementação em São Vicente seria um passo decisivo rumo à sustentabilidade, à justiça inter-geracional e à dignidade ambiental que a nossa ilha merece. Assiste-se igualmente uma tendência positiva de crescimento da implementação desta tecnologia no nosso continente, liderada pela Etiópia, desde 2018.
1.Waste-to-Energy: Génese e evolução:
“Introdução ao Waste-to-Energy (WTE)
A tecnologia de transformação de resíduos em energia (WtE) surgiu no final do século XIX, utilizando a incineração de resíduos para gerar calor e, posteriormente, eletricidade. Ganhou destaque no século XX por oferecer uma solução dupla: gestão de resíduos sólidos e produção energética.
No século XXI, os incineradores tornaram-se tecnologicamente avançados, com sistemas de filtragem de gases, monitorização, recuperação de calor e gestão automatizada de resíduos. Estes avanços tornaram o processo mais eficiente e ambientalmente seguro.
Hoje, existem mais de 2.200 instalações WtE no mundo, especialmente na Europa e Ásia Oriental, impulsionadas pela necessidade de melhorar a gestão de resíduos e aumentar a produção de energia renovável, reduzindo a dependência de combustíveis fósseis e as emissões de CO₂
Ainda, de acordo com o Estado-da-Arte, cerca de 85% do lixo produzido por uma cidade com mais de 70 mil habitantes (exemplo dado de acordo com a realidade dos E.U.A) é passível de ser queimado numa incineradora de WTE e a taxa de redução de volume de resíduos sólidos urbanos ascende aos 87-90%.
2.Geração de Energia
O vapor necessário para a geração de eletricidade a partir de biomassa/resíduos pode ser produzido por diversas rotas termoquímicas, tais como combustão direta, gaseificação acoplada ou pirólise seguida de combustão dos gases e bio-óleos gerados, bem como pela queima de biogás proveniente da digestão anaeróbica de resíduos orgânicos. Estas tecnologias permitem converter a energia química armazenada na biomassa em calor, que é então utilizado para aquecer água em uma caldeira de alta pressão, produzindo vapor.
Esse vapor alimenta um Ciclo de Vapor de Rankine (CVR), um ciclo termodinâmico amplamente empregado para a conversão de energia térmica em eletricidade. O ciclo inicia com a geração de vapor saturado em caldeiras operando tipicamente entre 20 a 100 bar, dependendo do tipo de biomassa/ resíduos sólidos urbanos e da arquitetura térmica adotada. Esse vapor passa por um superaquecedor, que o eleva a temperaturas entre 350 °C e 540 °C, transformando-o em vapor superaquecido — condição essencial para maximizar a entalpia de expansão e, consequentemente, a eficiência do sistema
A expansão do vapor ocorre em uma turbina a vapor, onde a energia térmica é convertida em energia mecânica no eixo, accionando um gerador síncrono ou assíncrono. Após a expansão, o vapor remanescente é condensado num condensador operando sob vácuo parcial (geralmente entre 0,03 e 0,1 bar), sendo o condensado bombeado novamente para a caldeira, fechando o ciclo de Rankine.
A eficiência térmica do CVR está limitada pelo segundo princípio da termodinâmica, sendo fortemente dependente da diferença entre a temperatura de entrada da turbina (fonte quente) e a do condensador (fonte fria). Em instalações de WtE convencionais, a eficiência elétrica líquida situa-se geralmente entre 26% e 30%, podendo alcançar até 35–38% quando operando em condições termodinâmicas mais elevadas (pressões acima de 80 bar e temperaturas superiores a 500 °C) e com o uso de tecnologias como reaquecimento e regeneração
A relação direta entre a pressão e temperatura do vapor e o desempenho do ciclo faz com que o uso de condições de operação avançadas seja vantajoso do ponto de vista da eficiência energética, desde que compatível com os limites dos materiais das caldeiras e turbinas e os custos de capital e manutenção associados (Stultz & Kitto, 1992)
Pelo exposto acima, pode-se depreender facilmente que três graves e prementes problemas seriam de imediato resolvidos com uma estação de WtE, nomeadamente:
- Diminuição significativa da superfície necessária para armazenamento provisório dos resíduos;
- Emissão de gases para a atmosfera: A prática ainda comum de queima a céu aberto gera elevadas emissões de fumos tóxicos, incluindo dióxido de enxofre (SO₂), monóxido de carbono (CO), óxidos de nitrogênio (NOₓ) e partículas finas (PM10 e PM2,5), altamente prejudiciais à saúde pública e ao meio ambiente.
(Mannan Zafar, 2024). Pela quantidade de lixo diariamente depositado na lixeira Municipal do Mindelo, na ordem das 50 toneladas nos dias de hoje (Kaza, Yao, Bhada-Tata, & Woerden, 2018) , depreendida pela produção de lixo per/capita, deduz-se linearmente uma emissão de gases e partículas nocivos, na ordem dos 200 m3/h (Sivertsen, 2006) durante o processo de incineração controlada. - Produção de energia eléctrica proveniente de uma fonte primária practicamente gratuita e constante que inclusivamente poderia também ser utilizada para dessalinização de água para rega, beneficiando as zonas limítrofes de Ribeira de Vinha, Ribeira de Julião e ainda “quilómetro cinco/seis”, onde a agricultura já é praticada.
Ainda, como sub-produto utilizável, pós-processamento, temos as cinzas que tanto podem ser utilizadas como fertilizantes, bem como filler para agregados de construção civil (betão e emulsões betuminosas) diminuindo directamente o impacto da indústria de extracção de inertes e alavancando ainda mais a viabilidade financeira do investimento
Os restos ferrosos, se não sujeitos a uma triagem prévia à incineração, poderiam ser recuperados com utilização de electro-íman alimentado por uma turbina eólica ou parque fotovoltaico, e posteriormente fundidos localmente para fabrico de peças várias ou comercializado para o exterior como matéria-prima industrial
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1236 de 6 de A de 2025.