A urbanização descontrolada e desorganizada e a substituição de calçadas tradicionais em pedra basáltica por pavimentos asfálticos e estruturas em betão compromete a drenagem natural, altera o balanço radiativo e reduz a evapotranspiração. Estes processos fragilizam a resiliência climática e sobrecarregam infraestruturas hídricas e de saúde. Eventos como as enxurradas da Madeira em 2010 e de São Vicente demonstram os riscos destes processos. Reconhecer tais contraindicações é crucial para promover um urbanismo sustentável que valorize materiais locais e preserve o património, conciliando conforto humano, identidade cultural e adaptação às mudanças climáticas.
1. Todo Betão e Alcatrão e o Fenómeno da Ilha Urbana de Calor
As cidades caracterizam-se por modificações significativas no balanço energético e hídrico da superfície. A ilha de calor (ICU) é uma condição atmosférica característica das cidades, responsável por aumentos da temperatura em zonas densamente urbanizadas, que podem ser críticos em climas tropicais e áridos como o de Cabo Verde. A presença massiva de asfalto e betão agrava ondas de calor, aumentando a mortalidade entre idosos e doentes com reduzida capacidade de termorregulação. Em Cabo Verde, onde a disponibilidade de infraestruturas de saúde é limitada, tais fenómenos podem ter consequências sociais desproporcionadas.
ICU é um dos fenómenos climáticos mais bem documentados em áreas densamente edificadas e impermeabilizadas. Em Cabo Verde, a sua relevância é acrescida por dois fatores estruturais: (i) o clima árido a semiárido, marcado por elevadas amplitudes térmicas e precipitações irregulares, e (ii) a escassez de vegetação urbana, que limita o arrefecimento evaporativo.
O alcatrão e o betão apresentam um albedo (reflexão da radiação incidente) muito baixo (tipicamente 0,05–0,15), absorvendo a maior parte da radiação solar incidente. Essa energia é armazenada nas camadas superficiais e progressivamente libertada sob a forma de calor durante a noite. Em contraste, solos naturais e pavimentos em pedra basáltica, quando não polidos, podem atingir albedos superiores (≈0,25–0,30), refletindo mais radiação e aquecendo menos. Além disso, o betão e o asfalto têm elevada capacidade térmica e condutividade, o que prolonga a libertação de calor e mantém temperaturas elevadas após o pôr do sol.
A substituição de áreas verdes por superfícies seladas impede a infiltração de água e a evaporação do solo (redução da evapotranspiração), cortando um importante mecanismo de dissipação de energia. Em zonas costeiras de Cabo Verde, onde a humidade relativa é naturalmente baixa, a evapotranspiração limitada agrava o stress térmico e aumenta o consumo de energia para arrefecimento artificial.
O aquecimento diferencial entre áreas urbanas e rurais intensifica gradientes de pressão, impacta na circulação atmosférica local, poder originando brisas urbanas e movimentos convectivos que podem alterar a dispersão de poluentes. Nas cidades cabo-verdianas como Praia ou Mindelo, onde topografia acidentada condiciona a ventilação natural, o calor acumulado em vales e encostas densamente edificados aumenta a sensação térmica e dificultarão a dissipação de poluentes.
Consequências para a saúde e conforto térmico – Estudos em ambientes tropicais e semiáridos (Oke, 1982; Santamouris, 2015) demonstram que a ICU pode elevar as temperaturas nocturnas em 3 °C a 7 °C relativamente a áreas periféricas.
Embora faltem estudos mais aprofundados, a experiência de outras ilhas atlânticas (Madeira, Canárias, Açores) confirma que a impermeabilização acelerada é um fator-chave de intensificação do calor urbano.
Em Mindelo e na Praia, a substituição de calçadas de pedra basáltica por asfalto em zonas centrais tem sido acompanhada de relatos empíricos de aumento da temperatura superficial e maior desconforto térmico noturno. A expansão de urbanizações periféricas com pavimentos impermeáveis e poucas árvores reforça o risco de microclimas quentes. Isto poderá implicar no futuro maior risco de desidratação e mortalidade em grupos vulneráveis (idosos, crianças, doentes crónicos), sobretudo se as ondas de calor tornarem frequentes com anunciada a mudança climática. Por outro lado, a necessidade de arrefecimento artificial intensifica a demanda energética.
2. Todo Betão e Alcatrão e efeitos Hidrológicos e Erosivos: O ciclo impermeabilização, escoamento superficial, erosão
A impermeabilização extensiva do solo por alcatrão e betão intensifica o escoamento superficial e reduz drasticamente a infiltração, aumentando o risco de cheias urbanas e de erosão em ilhas com forte declividade. A aceleração do escoamento das águas pluviais, em combinação com chuvas torrenciais cada vez mais frequentes em contexto de mudança climática, agrava vulnerabilidades já presentes em ecossistemas áridos e frágeis.
O exemplo das cheias da Madeira (2010) e o recente evento da ilha de S, Vicente constituíram casos paradigmáticos. Nos dois casos uma tempestade tropical extrema gerou cheias e deslizamentos agravados pela impermeabilização do solo e pela ocupação integral e desordenada do território. Tais eventos ilustram como a interação entre fenómenos climáticos extremos e más práticas urbanas de uso do solo, a ausência de obras de hidráulica urbana e rural, podem potenciar catástrofes em contextos insulares. A conjugação da urbanização e da ocupação indiscriminada das encostas com o asfaltamento massivo das ruas e o abandono de obras tradicionais de hidráulica rural (levadas, socalcos, canais de drenagem) ou projectos de engenharia hidráulica de capital intensivo, financiados pelo estado e a cooperação internacional, teve consequências nefastas. A diminuição drástica da rugosidade dos solos e da resistência ao escoamento pode transformar episódios de precipitação intensa em verdadeiras catástrofes, com movimentos de massa de água e lamas, ravinamentos súbitos e destruição de infraestruturas. Acrescente-se que a perda de solos férteis por erosão laminar e em ravina, a sedimentação acelerada em linhas de água e a consequente obstrução de galerias pluviais e barragens comprometem o ciclo hidrológico e a qualidade da água, afetando não apenas a segurança urbana, mas também os recursos hídricos e a agricultura.
3. Medidas de mitigação recomendadas
Para quebrar o círculo vicioso de impermeabilização–escoamento–erosão medidas de mitigação são necessária. Que reduzem a impermeabilização e contribuem para os microclimas locais. Estas incluem a reabilitação de bacias de retenção, a renaturalização de linhas de água, a manutenção de zonas de infiltração, a construção de barragens e bacias de retenção e “rain gardens” em todos os vales, a conservação de terraços agrícolas e a aplicação de técnicas de drenagem sustentável (permeabilização parcial, pavimentos drenantes), o aumento da arborização urbana para favorecer sombreamento e evapotranspiração. Para reduzir a vulnerabilidade a Eventos Extremos e Riscos Hidrológicos e Erosivos, medidas específicas de Mitigação devem ser instituídas. Elas consistem na implementação de: um sistema de monitorização e alerta, na criação de uma rede de monitorização hidrometeorológica para detetar picos de precipitação e níveis de água em tempo real, na implementação de planos de contingência e sistemas de aviso precoce para comunidades em zonas de risco, permitindo resposta rápida a cheias repentinas, no mapeamento de risco hidrológico para restringir ou condicionar a ocupação dos solos de encostas, vales e leitos de cheia, na reabilitação e manutenção de levadas, socalcos e canais de drenagem para travar escoamentos e favorecer a infiltração. Ao mesmo tempo a integração de medidas que limitam o efeito da ilha de calor (ICU), jogam em favor da mitigação aos eventos pluviosos extremos. Infraestrutura verde e planeamento climático não apenas contribuem para a reduzir os efeitos das cheias, como também para reduzir a temperatura urbana média, logo melhorar a qualidade do ar, a eficiência energética e a saúde pública — pontos críticos para ilhas áridas e densamente povoadas como as de Cabo Verde.
Em síntese, a implementação combinada destas medidas — infraestruturas verdes, reabilitação das obras tradicionais, planeamento territorial restritivo e sua descentralização, restauro ecológico e monitorização — é crucial para aumentar a resiliência de cidades de Cabo Verde. Além de reduzir a vulnerabilidade a eventos extremos, contribui para a conservação dos recursos hídricos e para a adaptação às mudanças climáticas. A urbanização e o uso indiscriminado e a generalização do alcatrão e do betão criam uma combinação perigosa de riscos ambientais sérios, ligados à intensificação do calor urbano e à fragilidade hidrológica do arquipélago, já sujeito a défices hídricos, ondas de calor e cheias. Reconhecer e mitigar estes efeitos, deve ser uma prioridade estratégica nacional.
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Referências
- Arnfield, A. J. (2003). Two decades of urban climate research: a review of turbulence, exchanges of energy and water, and the urban heat island. International Journal of Climatology, 23(1), 1–26.
- Oke, T. R. (1982). The energetic basis of the urban heat island. Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society, 108(455), 1–24.
- Santamouris, M. (2015). Analyzing the heat island magnitude and characteristics in one hundred Asian and Australian cities and regions. Science of the Total Environment, 512-513, 582–598.
- UN-Habitat. (2011). Cities and Climate Change: Global Report on Human Settlements 2011. London: Earthscan.
- Grimmond, S. (2007). Urbanization and global environmental change: local effects of urban warming. Geographical Journal, 173(1), 83–88.
- Costa, A. C., & Santos, F. D. (2010). Urban climate and climate change in Lisbon. Urban Climate, 1(1), 1–16.
- Lopes, J.F, & Costa, A. (2011). Debatendo mudanças climáticas em Cabo Verde e S. Tomé. Notícias do Norte.
- Lopes, J. F. (2013). Entre o Alcatrão e o Basalto (1.ª, 2.ª e 3.ª partes). Liberal Online (indisponível).
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1245 de 08 de Outubro de 2025.