Reflexões sobre património e desenvolvimento urbano de Cabo Verde: O Urbanismo entre o Betão, o Alcatrão e o Basalto

PorJosé Fortes Lopes,29 set 2025 8:06

Este tema articula-se com dois artigos anteriores que retomam algumas ideias debatidas em 2013 jornal online Liberal Online, no artigo intitulado Entre o Alcatrão e o Basalto, em três partes, hoje indisponíveis na internet pelo jornal ter desaparecido, mas que poderão ser disponibilizados a quem pretenda revisitá-los.

1.Introdução

Apesar de o título parecer anódino, esses textos tiveram o mérito de discutir os dilemas do desenvolvimento urbano em Cabo Verde, tomando como ponto de partida o que é atualmente tido como natural na visão de crescimento e progresso das elites locais e nacionais centralizadas na capital: a urbanização anárquica das cidades e a substituição generalizada das calçadas de pedra basáltica por pavimentos em alcatrão. Sustenta-se que a corrida para a modernidade, marcada pela adoção acrítica de modelos de desenvolvimento insustentáveis e de materiais importados, pode conduzir a problemas de viabilidade.

A modernização acelerada em Cabo Verde tem-se traduzido, em grande medida, por uma urbanização crescente e anárquica das ilhas-cidades e pela generalização de obras públicas de asfaltamento. Esse fenómeno acompanha, em linhas gerais, o crescimento económico de muitos países, mas coloca desafios específicos a um arquipélago insular em vias de desenvolvimento. Este processo suscita reflexões sobre sustentabilidade ambiental e opções de desenvolvimento. Este trabalho procura, assim, problematizar a visão desenvolvimentista que tende a equiparar modernidade à adoção indiscriminada de asfalto e betão.

2.Património versus Modernidade

O urbanismo caótico que caracteriza atualmente de muitas cidades cabo-verdianas tem levado ao derrube de edifícios históricos e à perda de um património construído de elevado valor cultural e identitário. A proliferação de casas modernas de vários pisos, em formas paralelepipédicas e o uso generalizado de materiais importados, gera uma falsa sensação de modernidade, confundindo crescimento vertical com desenvolvimento sustentável. Esta transformação rápida e desordenada descaracteriza os centros urbanos, diluindo a memória arquitetónica e apagando referências históricas. Além disso, a substituição de calçadas tradicionais e a impermeabilização generalizada agravam o desconforto climático, com aumento de ilhas de calor, diminuição de ventilação natural e maior escoamento pluvial. O resultado é um ambiente urbano menos habitável, que compromete a qualidade de vida, enfraquece a identidade visual das cidades e reduz o seu potencial turístico. arquitetónico que poderia ser motor de desenvolvimento económico e social

Historicamente, a pedra basáltica constituiu a principal matéria-prima disponível para infraestruturas urbanas em Cabo Verde. As calçadas tradicionais, ainda que frequentemente irregulares e por vezes desconfortáveis para peões e automóveis, fizeram parte do quotidiano das cidades e vilas, tornando-se símbolo da criatividade local e de um saber-fazer transmitido por gerações de mestres pedreiros.

Nas últimas décadas, porém, a substituição indiscriminada destas calçadas por pavimento asfáltico passou a ser entendida como sinal de crescimento e progresso. Essa mudança, embora socialmente valorizada pela sua aparência de limpeza e modernidade, representa também a erosão de um património: as tradicionais estradas calcetadas de Cabo Verde, muitas delas construídas ao longo de décadas durante o período colonial e a chamada 1.ª República, com elevada intensidade de mão de obra. Em contexto de escassez de recursos e de necessidade de valorização cultural, tais infraestruturas deveriam ser preservadas e requalificadas, não descartadas.

Do ponto de vista urbanístico, a substituição das calçadas de pedra por asfalto reflete uma conceção de cidade centrada sobretudo no automóvel e na circulação rápida, em detrimento de uma visão integrada do espaço público. Essa opção traduz a ausência de planos de urbanismo sustentável que articulem mobilidade, drenagem de águas pluviais, conforto térmico e preservação do património. A falta de planeamento a longo prazo tem resultado em ruas sobreaquecidas, impermeabilização excessiva, menor capacidade de infiltração e perda de identidade paisagística. Um urbanismo mais atento à morfologia insular e ao clima árido poderia favorecer soluções híbridas, combinando pavimentos tradicionais permeáveis com zonas pedonais e verdes, capazes de reduzir o escoamento superficial, melhorar o microclima e reforçar o valor cultural e turístico das cidades cabo-verdianas.

3.Desenvolvimento, infraestruturas e falsa perceção de progresso

A urbanização dos países é frequentemente apresentada pelas autoridades como prova do dinamismo económico nacional. Como recordava De Gaulle — «Quand le bâtiment va, tout va» — a construção é muitas vezes vista como motor de crescimento. No entanto, medir o desenvolvimento apenas pelo crescimento das cidades, pela aparência das habitações ou pelo número de quilómetros de estradas asfaltadas revela-se redutor e ignora dimensões qualitativas ligadas ao ambiente urbano, à sustentabilidade e à preservação do património. O urbanismo em Cabo Verde tem sido marcado por um forte centralismo económico e político que concentra recursos e investimentos em poucos centros urbanos, essencialmente na capital, em detrimento das periferias e das zonas rurais. Este modelo contribui para o empobrecimento e abandono de várias ilhas do arquipélago e do seu interior, enquanto permite o crescimento desordenado das cidades, muitas vezes sem planeamento nem infraestruturas básicas: saneamento adequado, abastecimento regular de água ou rede de drenagem, acesso à eletricidade, etc. Nas periferias das cidades, multiplicam-se construções precárias, frequentemente erguidas em encostas frágeis ou zonas de risco. Essa expansão caótica aumenta a vulnerabilidade a intempéries, inundações, movimentos de massa e doenças, revelando a urgência da descentralização de Cabo Verde, de um ordenamento territorial que equilibre desenvolvimento, segurança e qualidade de vida e de políticas urbanas inclusivas.

A pressão para adotar soluções “modernas” traduz também uma tendência para descartar tudo o que aparenta velho, a traça urbana tradicional das cidades e práticas e materiais tradicionais, considerados antiquados ou pouco competitivos. A construção tradicional e a calçada cabo-verdiana, enquanto património material, são cada vez mais marginalizadas nesse processo.

A descaracterização de cidades e a uniformização do espaço urbano reduzem a autenticidade das cidades cabo-verdianas e comprometem o seu potencial de atração turística, junto de visitantes interessados na descoberta de identidades locais. A preservação e requalificação de cidades, o uso de calçadas tradicionais poderiam constituir um elemento distintivo na oferta turística nacional, enquanto fomentariam emprego local e a manutenção de saberes artesanais.

Tal como sublinha Loude (1999), o desenvolvimento cabo-verdiano raramente se articula com a salvaguarda do património, resultando em tensões entre modernidade e conservação. A descaracterização das cidades e o uso indiscriminado do alcatrão não devem, pois, ser entendidos apenas como uma questão técnica de infraestrutura, mas como uma escolha com implicações culturais, ambientais e sociais. É necessário encontrar um equilíbrio entre modernidade e tradição, capaz de promover desenvolvimento sustentável sem comprometer o património. Sem políticas de descentralização, de ordenamento do território e de reabilitação patrimonial, perde-se irreversivelmente um legado cultural e patrimonial para além de se colocar outros riscos, o meio ambiente e as populações.

Referências

  • Ashworth, G. J., & Tunbridge, J. E. (2000). The Tourist-Historic City: Retrospect and Prospect of Managing the Heritage City. Elsevier.
  • European Commission. (2009). Promoting Sustainable Urban Development in Europe: Achievements and Opportunities. Brussels: EU Publications.
  • Harvey, D. (1996). Justice, Nature and the Geography of Difference. Blackwell.
  • Loude, J.-Y. (1999). Cabo Verde: Notas Atlânticas. Lisboa: Europa-América.
  • Pina, A. (2011). Falemos da Agricultura e do Desenvolvimento Rural. Liberal Online.
  • Tuan, Y. F. (1977). Space and Place: The Perspective of Experience. University of Minnesota Press.
  • United Nations Human Settlements Programme (UN-Habitat). (2010). State of the World’s Cities 2010/2011: Bridging the Urban Divide. London: Earthscan.
  • Lopes, J. F., & Costa, A. (2011). Debatendo Mudanças Climáticas em Cabo Verde e S. Tomé. Notícias do Norte.
  • Lopes, J. F. (2013). Entre o Alcatrão e o Basalto (1.ª, 2.ª e 3.ª partes). Liberal Online (indisponível).

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1243 de 24 de Setembro de 2025.

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Autoria:José Fortes Lopes,29 set 2025 8:06

Editado porAndre Amaral  em  29 set 2025 8:06

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