O Silêncio de Romeu di Lurdis, provocado por uma partida prematura e dolorosa

PorJosé Mendonça Monteiro,20 out 2025 8:07

José Mendonça Monteiro - Licenciado em Direito; Técnico da Segurança Pública; Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processo Penal militar
José Mendonça Monteiro - Licenciado em Direito; Técnico da Segurança Pública; Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processo Penal militar

​Há silêncios que gritam. E há ausências que pesam mais do que montanhas. A morte precoce e repentina de Romeu di Lurdis deixou Cabo Verde em estado de luto cultural. Não foi apenas um músico que partiu, foi um símbolo, um pedaço vivo da alma crioula, arrancado do convívio de um povo que ainda o precisava ouvir, ver e sentir.

As ruas de Ponta d’Água choram em silêncio. Os becos que um dia ouviram as suas primeiras batucadas e os sonhos cantados de uma juventude inquieta, hoje ecoam apenas a dor do vazio.

Romeu nasceu e cresceu num dos bairros mais emblemáticos da cidade da Praia, Ponta d’Água, essa terra fértil de talentos, berço de uma geração de ouro que deu ao país quadros de referência em várias áreas: da política à segurança nacional, das artes à administração pública. Era uma geração que acreditava, contra todas as probabilidades, que dos bairros humildes também podiam surgir os grandes nomes da nação. Romeu foi um deles, um jovem de origem simples, de sorriso aberto e olhar sereno, que aprendeu cedo que a música era o seu passaporte para a eternidade.

A sua bibliografia musical é, na verdade, um espelho da sua biografia humana. Romeu não cantava ficções, ele narrava realidades. Cantava o que viveu, a infância difícil, os amores breves, os dias de escola, as noites sem sono, o som das moradias e o perfume da maresia que entra sem pedir licença pelas janelas abertas da Zona Ponta. Obras como “Sonhu Sufridu”, “Boita na Fazenda”, “Vida di Studanti” e “Paraizu Praia” revelam um artista que não se escondia atrás da estética: mostrava-se inteiro, nu, frágil, mas profundamente verdadeiro. Era um cantor da vida, das suas feridas e esperanças.

Romeu di Lurdis foi um trabalhador incansável dos seus sonhos. Lutou contra a maré da indiferença e contra as tempestades do destino. Participou em concursos de vozes, enfrentou o medo do fracasso, foi para os Estados Unidos em busca de oportunidades, onde trabalhou em construção civil, longe do glamour, mas perto da persistência. Entre pausas de cimento e poeira, escrevia letras no telemóvel e gravava melodias com fones emprestados. Quando regressou, trazia no peito não apenas calos nas mãos, mas o coração cheio de canções.

O resultado desse percurso foi o seu primeiro álbum, “Amoransa”, uma obra que refletia a ternura e a dureza da vida quotidiana, e que o catapultou como um dos nomes mais promissores da nova música cabo-verdiana. Cinco anos depois, lançou “Korason Abertu”, um álbum maduro, mais introspectivo, mais humano. Seria, tristemente, o seu último.

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Mas Romeu não era apenas um artista, era também um ativista social especial, daqueles raros que não se limitam a apontar falhas, mas que se oferecem ao sacrifício da transformação. Ele não só criticava os poderes quando se desviavam da justiça, como ousou desafiar as estruturas e procurar ser o próprio poder, acreditando que a mudança não se faz de fora, mas de dentro. Nas suas falas públicas e nas suas ações comunitárias, Romeu defendia uma justiça social prática, não de discursos, mas de atitudes. Inspirava-se em Amílcar Cabral, Renato Cardoso, Orlando Pantera e em todos aqueles que viam na palavra um instrumento de libertação.

A sua luta estendia-se à defesa apaixonada da Cidade da Praia, o coração político e cultural do país. Romeu amava a Praia com um fervor quase religioso. Fez-lhe uma homenagem eterna com a música “Paraizu Praia”, onde canta a cidade não como um lugar, mas como um sentimento. Acreditava que a capital merecia mais respeito, mais reconhecimento e mais gratidão, sobretudo daqueles que, vindos de longe, nela encontraram oportunidades, mas pouco amor demonstraram.

E talvez fora nessa causa que Romeu também se insurgiu contra o silêncio institucional, lembrando que, o episódio mais doloroso dessa ingratidão, ocorreu quando, numa sessão parlamentar, o tema da ordem do dia era o estatuto especial da Cidade da Praia. Esperava-se um debate digno, construtivo, à altura da capital de um país. Mas, como numa peça de ironia cruel, cada deputado desviou o assunto para os problemas das suas localidades, ignorando completamente a importância do tema. Romeu assistiu também, nesse momento a confirmação de que a Praia era amada apenas quando conveniente, e esquecida sempre que necessário. Talvez, por isso, até ao fim, defendeu com veemência o reconhecimento do valor da cidade que o viu nascer, cantar e sonhar.

A morte de Romeu di Lurdis é, portanto, mais do que uma perda pessoal é uma tragédia coletiva. O país perde um artista autêntico, a juventude perde um exemplo, e a Praia perde um dos seus mais fiéis amantes. Os que o conheceram falam de um homem íntegro, justo, sensível e de uma humildade rara. Era o tipo de pessoa que transformava cada conversa numa aula de vida, e cada canção numa oração.

Hoje, resta-nos o consolo da memória. As suas músicas continuarão a tocar nas rádios, nas festas de bairro, nos carros que sobem e descem a Avenida Cidade Lisboa, que deslocam ao interior da ilha de Santiago, mas também, a cada esquina de Cabo Verde. A cada acorde o Romeu faz-nos lembrar do tempo da infância, do tempo da escola, das dificuldades, da resiliência, ademais, de que ele viveu intensamente e acreditou no poder da arte e da verdade.

Aos seus familiares, amigos e admiradores, ficam os pêsames mais profundos, mas também o convite à celebração da sua passagem por esta terra. Porque Romeu di Lurdis não morreu, apenas se transformou em melodia, em verso, em saudade. Cabo Verde e a cidade da Praia, não o esquecerão, porque quem canta com o coração aberto jamais é silenciado.

Que o vento leve até o infinito a sua voz, e que os mares da Praia Negra, da Gamboa, da Prainha, da Quebra Canela, do Portinho, de São Francisco, de São Tomé… purifiquem e guardem para sempre o reflexo da sua alma cruadira.

(…) “Dispidida foi dimas, odjal ta bai foi duru

Dispidida ki fazem mal, odjal ta bai ki magricem

Dispidida mi n ka kre mas nem na luz nem na sukuru

Dispidida ah Nhordes nhu djudam

Nhu limial caminhu pe bai pe torna bem”…, (https.letras.mus.br/romeu-di-lurdis/dispidida/)

Adeus, Romeu di Lurdis! O palco ficou vazio, mas o teu eco permanece, vivo, eterno, crioulo.

(…) “Dispidida foi dimas, odjal ta bai foi duru

Dispidida ki fazem mal, odjal ta bai ki magricem

Dispidida mi n ka kre mas nem na luz nem na sukuru

Dispidida ah Nhordes nhu djudam

Nhu limial caminhu pe bai pe torna bem”…, (https.letras.mus.br/romeu-di-lurdis/dispidida/)

Adeus, Romeu di Lurdis! O palco ficou vazio, mas o teu eco permanece, vivo, eterno, crioulo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1246 de 15 de Outubro de 2025.

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Autoria:José Mendonça Monteiro,20 out 2025 8:07

Editado porAndre Amaral  em  20 out 2025 8:07

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