Com mandatos caducados que, em alguns casos, atingem o dobro do tempo legalmente previsto, o país expõe-se a um défice de legitimidade que afeta a fiscalização da constitucionalidade, a transparência das contas públicas, a regulação eleitoral e a própria hierarquia da defesa nacional.
A origem desta paralisia institucional reside em dois focos de inação política, cada um exigindo soluções jurídicas distintas.
I. A Armadilha da Maioria Qualificada no Parlamento
O primeiro foco de bloqueio reside na Assembleia Nacional, onde a eleição dos membros do Tribunal Constitucional (TC), do Tribunal de Contas, da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC) exige uma maioria de dois terços dos deputados.
A maioria qualificada é um instrumento nobre, concebido para garantir que figuras de elevado perfil institucional e independência inquestionável mereçam o mais amplo consenso político. Contudo, em contextos de elevada polarização, como se verifica em Cabo Verde, esta exigência confere à minoria um poder de veto absoluto e ilimitado, transformando o mecanismo de consenso numa autêntica maioria de bloqueio.
Esta situação tem paralelo noutras democracias. Em Portugal, a eleição de juízes do TC também requer maiorias qualificadas, mas os partidos conseguem frequentemente estabelecer "pactos de regime". Em Espanha, o bloqueio crónico na renovação de órgãos judiciais demonstra o perigo da rigidez legal.
Análise Comparativa – O Exemplo Italiano e as Boas Práticas, o modelo italiano na eleição do seu Presidente da República ilustra a flexibilização. Exige maiorias elevadas nas primeiras votações, mas, a partir de certo escrutínio, a exigência desce para a maioria absoluta. Este mecanismo força o consenso inicial, mas assegura o desbloqueio institucional em tempo razoável. Esta prática internacional demonstra que a protecção da independência não deve justificar o colapso institucional.
II. A Inércia do Executivo e da Presidência
O segundo foco de inação manifesta-se no Poder Executivo e na Presidência da República. Diz respeito aos titulares com mandatos caducados que não dependem da eleição parlamentar. São estes o Procurador-Geral da República (PGR) e o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (CEMFA).
O regime constitucional estabelece que estes titulares são nomeados pelo Presidente da República, mediante proposta do Governo. A falha na renovação dos respetivos mandatos reside, inequivocamente, na omissão do dever de propor por parte do Governo e na omissão do dever de nomear por parte do Presidente da República.
Esta inércia, em cargos tão sensíveis para a segurança e a justiça, é de extrema gravidade. A ausência de uma liderança com plenos poderes no Ministério Público compromete o combate à criminalidade organizada, enquanto a situação no CEMFA debilita a cadeia de comando das Forças Armadas.
III. Soluções e Contributo Jurídico para o Desbloqueio
Para resgatar a legitimidade das instituições e assegurar a sua plena operacionalidade, propõem-se as seguintes soluções jurídicas concretas, visando a alteração dos mecanismos de eleição e nomeação.
1. A Cláusula da Maioria Decrescente (Para Bloqueios Parlamentares)
Para os órgãos cuja renovação exige a maioria de dois terços no Parlamento (TC, TContas, CNE, ARC), a solução mais equilibrada é a adopção da Cláusula da Maioria Decrescente ou Votação em Múltiplas Voltas. Esta medida, implementada mediante reforma constitucional ou alteração das respetivas leis orgânicas, visa forçar a deliberação e criar uma maioria de desbloqueio.
Primeira Votação (Consenso Ideal), manter-se-ia a exigência de dois terços dos Deputados em efetividade de funções.
Segunda Votação (Consenso Alargado), se a primeira for infrutífera, procede-se a uma nova votação após um período de reflexão (ex. 30 dias), baixando a exigência para a maioria de três quintos dos Deputados.
Terceira Votação (Desbloqueio Final): Caso as duas primeiras falhem, uma votação final exigiria apenas maioria absoluta (metade dos Deputados mais um) dos Deputados em efetividade de funções.
Este mecanismo retira o poder de veto ilimitado à minoria parlamentar, garantindo a continuidade das funções soberanas.
2. Prazos Vinculativos e Mecanismo de Suprimento (Para Inércia do Executivo/PR)
Para os órgãos de nomeação (PGR, CEMFA), a solução passa pela introdução de prazos máximos e vinculativos e pela criação de mecanismos de suprimento da omissão.
Dever e Prazo de Proposta do Governo, a lei deve estabelecer a obrigação de o Governo apresentar a sua proposta de nomeação ao Presidente da República num prazo máximo e vinculativo, por exemplo, 60 dias antes do termo do mandato.
Dever e Prazo de Nomeação Presidencial, o Presidente da República teria, por sua vez, um prazo máximo, subsequente à proposta, para decidir e efetivar a nomeação.
Mecanismo de Suprimento para o PGR, se o Governo faltar ao seu dever de propor, a iniciativa de submeter uma lista de nomes ao Presidente da República deve ser transferida para o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Esta medida protege a independência funcional da Magistratura.
O Imperativo da Responsabilidade
A crise de legitimidade dos órgãos de soberania em Cabo Verde é uma ameaça real ao seu prestígio democrático. A classe política deve entender que as reformas aqui propostas—a introdução da Cláusula da Maioria Decrescente no Parlamento e dos Prazos Vinculativos no Executivo—não são uma rendição ideológica, mas sim um imperativo jurídico para a saúde do sistema e um investimento na resiliência da República.
É tempo de todos demonstrarem um superior Sentido de Estado, garantindo que as instituições de controlo e soberania funcionem em plena legitimidade. O futuro da democracia cabo-verdiana depende da rapidez e da coragem destas decisões.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.
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