Mas os povos têm o direito de se rebelarem contra os seus dirigentes, quando estes descuidam, reiteradamente, os seus deveres de gerir, com parcimónia, equilíbrio e elevação, os interesses da Comunidade, pondo, assim, em causa o Pacto Social estabelecido. E, numa República, o cidadão, para além de votar e pagar impostos; para além de participar activa e responsavelmente, no processo de desenvolvimento; tem o dever cívico de protestar e insurgir-se contra o Poder constituído, quando este infringe, reiteradamente, a Constituição. Quando, do alto da sua magistratura, os dignatários fazem pouco, do senso comum, esvaziam os princípios e valores, tácita, legítima e unanimemente consagrados, ou espezinham os direitos constitucionalmente fixados, pervertendo, assim, o sistema, consensualmente instituído.
No início do Verão, muitos terão assistido, admirados como eu, ao anúncio oficial, feito pelo PR, perante as câmaras da televisão, no Jornal da Noite, do dia 10 de Junho, dizendo que a ilha do Fogo iria albergar, em Outubro, a Cimeira Internacional dos Oceanos.
É verdade que, pouco tempo antes, numa das suas deslocações ao Fogo, o mesmo pronunciara-se, em S. Filipe, nesse sentido. Mas, como se tratava de uma decisão que, no nosso Sistema de Governo, não cabe nas vestes do Presidente da República, tomei a boca mais como uma das traquinices do incumbente; um pretexto para falar ao coração da orgulhosa e influente comunidade foguense residente e expatriada, com o objectivo inconfessado de tirar daí dividendos políticos.
Nada tenho, obviamente, contra a descentralização de eventos e a promoção das ilhas, ditas periféricas.
Parece-me, todavia, que há que haver critérios objectivos e sérios, na promoção destes “dez grãozinhos de terra”.
Aquela decisão anunciada por Sua Excelência e que julgo ser de iniciativa pessoal, pecava, a meu ver, por não ter respaldo constitucional, o que já é suficientemente grave.
Efectivamente, no nosso Sistema de Governo, o PR não tem poderes executivos; não governa, apesar de representar interna e externamente, a República de Cabo Verde. E ele não pode ignorar essa norma ou fazer de conta que tal preceito é letra morta.
Dando, ainda assim, algum benefício de dúvida a Sua Excelência, pergunto se teria havido concertação com o Governo, antes de tal pronunciamento?
Se sim, essa circunstância deveria ter sido referida, fosse para clarificação das responsabilidades, fosse por uma questão de honestidade intelectual.
Porque a verdade é que, apesar de Cabo Verde ser um país arquipelágico, há umas ilhas com mais tradições, para não dizer mesmo com mais vocação marítima, do que outras.
Reza a história, por exemplo, que foi do Porto da Furna, na ilha Brava, que os cabo-verdianos começaram a emigrar para a América do Norte.
Maio, com o seu Porto Inglês, desempenhou um importante papel no comércio internacional do sal.
Ribeira Grande, em S. Tiago, foi o primeiro entreposto atlântico do comércio marítimo entre a Europa e a África e ponto de apoio da navegação transatlântica, para as Américas e para o Extremo Oriente.
De S. Vicente, com o seu Porto Grande aberto ao Mundo, ou Boa Vista, fonte tradicional de marinheiros crioulos, nem vale a pena falar.
Mesmo São Nicolau, berço outrora de baleeiros e, hoje, de capacitados pescadores expatriados nos Açores, Angola ou Sines, tem muito mais tradição marítima e oceânica do que a ilha contemplada com a cimeira, em referência.
Assim sendo e sem tirar à ilha do Fogo os pergaminhos que lhe são devidos, a escolha da mesma para realização de uma Conferência Internacional sobre Oceanos só pode ser capricho de quem julga ter o Rei na barriga.
A culpa é também, diga-se, um bocado da parte do Governo, que evita, a todo o custo, contrariar a Presidência, com receio, julgo, de perturbar o “bom funcionamento das instituições”.
Só que, num Estado de Direito Democrático, as regras do jogo político estão estabelecidas na Constituição da República, estatuto jurídico do político, que ambos juraram respeitar, defender e aplicar.
Aconteceu, aliás, outras vezes, antes de Junho e continua a acontecer semana sim, semana sim, o senhor PR vir a público pronunciar-se sobre assuntos que extravasam os seus poderes, constitucionalmente estabelecidos, numa azafama de protagonismo e de concorrência com o Executivo e, pior ainda, numa clara e persistente acção de desrespeito pela separação e interdependência dos poderes, com efeitos desestabilizadores para a estabilidade política e social que o Pais requer e prejuízo evidente para o papel de moderador do sistema e factor de unidade da Nação e do Estado, que a Constituição lhe reserva.
Bem sei que, ainda antes de exercer o actual cargo, não me lembro agora, se numa entrevista em que assim à laia de quem gosta de caramelos, dizia que gostava de mulheres, ou se numa outra, o então Primeiro-Ministro, agora detentor da mais alta magistratura do Estado asseverou que não tinha qualquer apetência para o cargo de Presidente da República, explicitando que, para Cabo Verde, ele defendia um Sistema de Governo de tipo alemão, em que o Presidente é tido, pejorativamente, como “corta-fitas” e é o Primeiro Ministro, chamado de Chanceler, quem governa e dá cartas, tanto a nível interno, como nas relações externas.
Afirmações públicas do estilo, por mais atrevidotas e muito bonitas que sejam ou pareçam, no imediato, têm consequências a prazo, ou não desempenhasse o seu autor as altas funções que, como é do domínio publico, exerce.
Entretanto, e não sei por que carga de água, o dito cujo resolveu candidatar-se à Presidência da República, venceu o escrutínio, tomou posse e está a exercer as funções para as quais afirmara, publicamente, não ter nenhuma apetência.
Padecerá, provavelmente, por essa via, de alguma frustração. Mas tal não justifica, parece-me, que esteja a exercer o cargo de forma tão abandalhada e desprezível para com a República.
Admito, sem conceder, que alguém que iniciou e fez boa parte do seu percurso como funcionário do Partido e que se gabou, recentemente, de ser abençoado porque, até hoje, alcançou tudo o que desejou, tenha tido alguma dificuldade em reintegrar-se na sociedade civil e sinta, agora, alguma angústia em acatar as regras do jogo, ou não se reveja, até, na condição de cidadão, de carne e osso. Mas, a vida não é feita só de benesses, né?
O que se espera e se exige, no entanto, dos altos dignatários do Estado é recato, ponderação e bom-senso na condução dos negócios públicos e na defesa do bem comum.
Manifestações de egos exacerbados e sede de protagonismo só podem adiar consensos, ridiculizar os seus protagonistas e redundar em prejuízo nacional.
“Aqui-d´ el-rei”! No ano em que celebra o seu 50˚ Aniversário como Estado soberano, o País não pode ser transfigurado em palanque de titulares enfunados. Cabo Verde ‒ vale a pena lembrá-lo ‒ é património e pertença comum, da gesta cabo-verdiana.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1250 de 12 de Novembro de 2025.
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