Mudanças Climáticas: São Vicente, Santiago Norte e Orçamento do Estado 2026

PorLuís Carlos Silva,19 nov 2025 13:06

Se o clima mudou, a governação tem de acompanhar.

Diz o ditado popular que “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”. É uma forma ingénua (quase reconfortante) de acreditar que a natureza respeita as nossas expectativas. Mas Cabo Verde, nos últimos tempos, tem sido obrigado a reescrever o ditado. A tempestade Erin, em São Vicente, parecia um acontecimento excepcional, daqueles que ficam na memória do povo como algo que só acontece uma vez numa geração. Contudo, antes de termos tempo para sarar as feridas, eis que as chuvas intensas regressam, desta vez atingindo Santiago Norte, particularmente, Tarrafal, São Miguel e Santa Cruz, com uma força que desmente o senso comum e desfaz qualquer ilusão de normalidade climática.

O que está a acontecer não é coincidência, é tendência e tem nome: mudanças climáticas. No momento em que o mundo se reúne no Brasil para discutir o futuro da ação climática, e quando se assinalam dez anos do Acordo de Paris, Cabo Verde recebe, de forma brutal, a confirmação de que o fenómeno não se esgota nos discursos. Aqui, as mudanças climáticas não são abstratas: são físicas, visíveis, disruptivas. Enquanto o mundo debate, nós sentimos. Enquanto alguns hesitam, nós enfrentamos. Enquanto se procuram consensos, a natureza lembra-nos que não há tempo a perder, pois ela é que define o tempo.

Foi essa realidade que levou o país a estruturar um Plano de Recuperação para São Vicente, Santo Antão e São Nicolau, uma resposta de emergência que se tornou também um roteiro de intervenção: drenagens reforçadas, intervenções costeiras, proteção de encostas, instrumentos sociais de apoio imediato e um novo olhar sobre a vulnerabilidade territorial. Essa experiência, marcada pela urgência e pelo rigor, é agora o ponto de partida para a intervenção em Santiago Norte. Os municípios são diferentes, as escalas variam, mas o princípio é o mesmo: aprender depressa, agir bem e preparar o território para o que pode vir a seguir.

É precisamente neste quadro que o Orçamento do Estado para 2026 ganha sentido. O OE2026 é o nosso primeiro orçamento verdadeiramente sensível ao clima, integrando marcadores que permitem identificar, avaliar e monitorizar quanto e onde estamos a investir na adaptação e mitigação. Não é uma inovação técnica isolada: é um instrumento de ação climática. É a tradução orçamental da aprendizagem feita em São Vicente e da realidade que Santiago Norte acaba de confirmar. O país não está apenas a reagir aos eventos, está a interiorizar lições e a ajustá-las à arquitetura das políticas públicas.

Mas para agir é preciso ter margem para tal. A experiência das últimas tempestades mostrou que a resiliência depende tanto do planeamento como da disponibilidade imediata de recursos. Por isso, o país precisa de espaço orçamental para a prevenção: capitalização consistente dos fundos de emergência, reforço dos mecanismos de resposta rápida e capacidade de intervenção antecipada em territórios frágeis. Preparar o país para o imprevisível deixou de ser uma questão técnica; é uma dimensão central da responsabilidade pública.

No artigo “A Lição de São Vicente”, defendi que Cabo Verde precisava de um orçamento capaz de medir, orientar e antecipar a ação climática. Hoje, essa visão tornou-se prática. E aprofunda-se com a proposta de revisão da Lei de Bases do Orçamento, que pretende inscrever de forma permanente a sensibilidade climática como princípio orientador. Esta mudança não responde apenas ao presente, responde ao futuro. Assume que as mudanças climáticas são o maior condicionante estrutural da governação num arquipélago vulnerável, e que a adaptação deve ser uma obrigação permanente, intergeracional e transversal.

À medida que observamos os estragos deixados pelas chuvas em Santiago Norte (estradas destruídas, moradias vulneráveis, agricultores que perderam tudo) torna-se evidente que proteger vidas e modos de vida continua a ser a primeira responsabilidade do Estado. E essa proteção exige uma estratégia coerente. A verdade é que Cabo Verde tem seguido um caminho assente em estabilidade macro fiscal, crescimento económico como âncora e sensibilidade social nas respostas públicas. É essa combinação que tem permitido ao país criar margem orçamental para agir em momentos de emergência climática.

Agora, acrescenta-se uma nova camada a essa estratégia: a da responsabilidade climática. Ela não substitui a estabilidade, nem o crescimento, nem a proteção social — complementa-os. Num país sujeito a choques frequentes, a resiliência climática tem de caminhar ao lado da resiliência económica e social.

O essencial é isto: as mudanças climáticas inauguram um tempo novo, que exige capacidade de prevenir sem sacrificar a estabilidade, de adaptar sem perder coerência e de proteger sem abdicar da responsabilidade fiscal. O OE2026 dá um passo decisivo ao colocar o clima no centro da decisão orçamental. A revisão da Lei de Bases consolida esse caminho. E Cabo Verde, confrontado com fenómenos que desmentem antigos ditados, começa finalmente a escrever um novo: se o clima mudou, a governação tem de acompanhar.

Só assim poderemos garantir que, mesmo quando o raio insiste em cair mais do que uma vez, o país estará pronto não apenas para resistir, mas para avançar.

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Autoria:Luís Carlos Silva,19 nov 2025 13:06

Editado porAndre Amaral  em  20 nov 2025 9:19

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