Na padaria Mãezinha, onde o Júlio Leite viu o seu negócio de família completamente destruído, não encontrei resignação. Vi, sim, a firmeza de quem só pensa em voltar a pôr pão quente nas mesas de São Vicente. Mas o momento mais marcante foi na Fazenda de Camarão, com Nelson Atanásio. Chegámos de coração apertado e, perante a destruição do trabalho de uma vida, não ouvimos palavras de lamento, nem números a medir prejuízos. O que escutamos foi um convite a olhar para o futuro: “Cabo Verde precisa aprender a viver do mar.” Palavras simples, mas que guardam a grandeza de quem transforma dificuldade em horizonte.
Esses dois encontros bastariam para resumir a minha visita. São Vicente, mesmo ferida, mostrou-me que existe algo mais forte do que a destruição: a capacidade de resistir, recomeçar e acreditar no futuro.
A vitalidade que encontrei na ilha refletiu-se em todo o país. Da Brava a Santo Antão, da Praia à Diáspora, ergueu-se uma onda de solidariedade ímpar. Pessoas simples, empresas, associações, igrejas e organizações civis uniram-se num mesmo gesto. Ajudar São Vicente tornou-se uma causa nacional. Essa corrente solidária foi, por si só, um dos pilares da recuperação e lembrou-nos que Cabo Verde é mais forte quando age em conjunto.
As instituições públicas também estiveram presentes desde o primeiro momento. A resposta imediata foi possível graças a mecanismos já existentes, como o Fundo Nacional de Emergência e o Fundo Soberano de Emergência, a que se somaram financiamentos externos. O Plano de Recuperação, aprovado pelo Governo, dá corpo a esse esforço. Estrutura-se em quatro grandes eixos: resposta emergencial, infraestruturas resilientes, habitação segura e serviços essenciais.
Mas o Plano não é apenas um documento técnico. É a tradução prática de uma mobilização coletiva: devolver dignidade às famílias, restabelecer serviços básicos e, sobretudo, construir soluções mais robustas para o futuro.
Reconstruir não pode significar apenas repor o que havia. Estradas, casas, escolas e serviços básicos devem, sem dúvida, ser devolvidos às pessoas. Mas é preciso ir mais fundo: dotar Cabo Verde de um novo patamar de resiliência.
E foi aqui que a tempestade me deixou uma inquietação. Se as pessoas já provaram a sua capacidade de superar, cabe ao Estado inovar para consolidar essa energia. Ir além do óbvio.
Tenho refletido sobre a possibilidade de introduzirmos, à semelhança do que já fazemos com a igualdade de género, um indicador ambiental no Orçamento do Estado. Não para criar mais burocracia, mas para garantir que cada investimento público seja avaliado também pela sua contribuição para a sustentabilidade e a resiliência.
Esta não é uma ideia isolada. Países como França e Irlanda já avançaram com orçamentos verdes, classificando as despesas segundo o seu impacto ambiental. Nova Zelândia foi mais longe, com o seu wellbeing budget, que integra critérios sociais e ambientais na afetação dos recursos. Suécia e Finlândia também fazem avaliações regulares das suas políticas à luz da sustentabilidade climática.
São exemplos que mostram que é possível medir, prestar contas e ajustar políticas a partir de métricas ambientais. Ponderar um indicador deste tipo em Cabo Verde seria transformar a lição de São Vicente numa política nacional: fazer da resiliência uma métrica de governação.
A tempestade que atingiu São Vicente podia ter ocorrido em qualquer outra ilha. A vulnerabilidade é nacional e, por isso, a lição também é.
Na Assembleia-Geral das Nações Unidas, o Primeiro-Ministro recordou a devastação de agosto e reafirmou a disponibilidade de Cabo Verde para reforçar a resiliência climática, defendendo o acesso a mecanismos internacionais de financiamento. Esses compromissos internacionais são importantes e precisam de tradução prática no plano interno.
A experiência de São Vicente pode ser esse catalisador: alinhar política externa com política doméstica, ligar compromissos globais a reformas internas que nos preparem para os desafios de amanhã.
A tempestade passou, mas o rasto que deixou não é apenas de destruição: é também de ensinamento. São Vicente mostrou que resiliência não é palavra de discursos, mas atitude vivida no quotidiano: no padeiro que insiste em recomeçar, no empresário que transforma ruína em visão, nas famílias que se erguem com dignidade.
O desafio que fica é este: que a mesma força que vi em São Vicente se torne guia para o país inteiro. Que saibamos transformar cada perda em oportunidade, cada crise em lição.
No pão que voltará a ser cozido, no mar que insiste em ser futuro e na solidariedade que uniu um arquipélago, está a semente de um Cabo Verde mais resiliente.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1244 de 01 de Outubro de 2025.