No Arquipélago, a Distância não é só Mar

PorManuel Brito-Semedo,24 nov 2025 7:46

Cabo Verde sempre viveu de encontros: de ilhas que se procuram, de mares que se atravessam, de vozes que se misturam. Mas, quando se trata de pensar o país, vivemos ainda demasiado separados. Falta-nos diálogo. Falta-nos escuta. Falta-nos confiança na nossa própria voz. Num arquipélago, ninguém chega longe sozinho.

A Travessia das Ideias

Pensar Cabo Verde exige abertura. Somos um país pequeno, mas carregamos muitas maneiras de ver o mundo – ritmos diferentes, histórias diferentes, memórias que nem sempre se cruzam. Contudo, vivemos frequentemente fechados nos nossos próprios círculos. Falamos muito, escutamo-nos pouco. Debatemos muito, reflectimos pouco. E sem escuta não há compreensão; sem compreensão não há caminho comum.

Temos uma comunidade intelectual diversa – escritores, académicos, artistas, jornalistas, professores, investigadores e a diáspora, sempre vigilante. Cada um guarda uma parte importante do país. Mas essas partes raramente se encontram. E, num arquipélago, as ilhas valem pelo que são – mas valem ainda mais pelas travessias que as ligam.

A Urgência de Criar Pontes

Criar pontes é criar espaços onde possamos conversar com naturalidade. Mas ainda estamos longe dessa prática. Basta olhar para o ensino superior: universidades e instituições coexistem, mas quase não colaboram. Dentro da mesma universidade, faculdades, escolas e centros de investigação trabalham lado a lado, mas não em conjunto. E muitos eventos académicos destinam-se a quem já domina a linguagem, e não ao país que deles precisa.

Dois exemplos recentes mostram bem esta dificuldade.

A 4.ª Conferência Internacional das Línguas Portuguesa e Espanhola (CILPE 2025), realizada na Praia, foi um marco importante, mas o programa mostra que grande parte dos painéis chegou estruturada no exterior e com protagonismo quase exclusivo de convidados internacionais. Cabo Verde participou, sim – o Primeiro-ministro fez a abertura, o Reitor da Uni-CV deu as boas-vindas, vários académicos cabo-verdianos moderaram mesas ou fizeram relatorias e Jorge Carlos Fonseca interveio num dos painéis – mas a presença como conferencistas principais foi muito reduzida. Cabo Verde acolheu a conferência, mas não conduziu o debate.

O segundo exemplo é o seminário internacional “Repensar o Género a partir de África: Perspetivas Globais e Locais”, da Uni-CV. Um encontro relevante, sim, mas demasiado fechado: pensado para um grupo restrito de especialistas, com pouca participação da sociedade cabo-verdiana – professores, estudantes, associações, artistas, comunidades. Debater género em África é necessário; fazê-lo em Cabo Verde sem integrar a experiência cabo-verdiana é uma contradição que fragiliza o próprio debate.

E esta tendência não se limita ao meio académico. Nos espaços públicos, o debate continua reduzido. Para lá da política partidária, quase não se discutem cultura, educação, ciência ou sociedade. E quando existem programas de comentário, os convidados são, regra geral, os mesmos representantes dos partidos, transformando estúdios de rádio e televisão numa extensão informal do Parlamento. A academia raramente é convocada: não vemos sociólogos, antropólogos, economistas, juristas, historiadores ou investigadores a analisar temas nacionais. Esta ausência empobrece a conversa pública e reforça a ideia de que pensar Cabo Verde permanece reservado a círculos estreitos.

Estes acontecimentos revelam um problema maior: pensamos o país em salas fechadas, com portas pouco abertas ao país real.

O Intelectual como Mediador do Futuro

O papel do intelectual cabo-verdiano não é guardar as certezas de sempre, mas ajudar a construir perguntas novas. É alguém que procura compreender antes de julgar; que reconhece as diferenças; que tenta aproximar – e não separar.

Pensar Cabo Verde não é um exercício solitário. Nenhum de nós vê o país inteiro. Cada um vê uma parte: a sua ilha, a sua área, a sua geração. E quando juntamos essas partes, começamos a ver mais longe. O futuro do pensamento cabo-verdiano dependerá menos da defesa de territórios pessoais e mais da capacidade de criar diálogo.

Num arquipélago, a distância não é só mar – também existe entre instituições que não conversam, entre saberes que não se cruzam, entre gerações que não se encontram.

Num arquipélago, ninguém chega longe sozinho – mas juntos podemos chegar mais longe do que imaginamos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1251 de 19 de Novembro de 2025.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,24 nov 2025 7:46

Editado porAndre Amaral  em  24 nov 2025 7:46

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