A Paz das Urnas e a Turbulência do Pós-Eleitoral: Uma Reflexão Fraterna sobre a Guiné-Bissau

PorLuís Carlos Silva,5 dez 2025 8:10

Ao escrever estas linhas, é impossível não sentir uma certa impressão de déjà vu. Para quem acompanha a vida política da Guiné-Bissau, a sucessão de crises institucionais cria a sensação de que estamos sempre a revisitar velhos capítulos com novos protagonistas. Esta percepção tornou-se ainda mais marcante para mim depois de ter sido, em duas ocasiões, observador internacional da CPLP no país. Nessas missões testemunhei uma das maiores riquezas da democracia guineense: a extraordinária paz do seu processo eleitoral. Filas serenas, um civismo irrepreensível e um profundo orgulho no ato de votar. O povo guineense é, sem exageros, dos mais pacíficos e cordatos do espaço lusófono.

A contradição emerge exatamente aí: como pode um povo tão pacífico não encontrar, no pós-eleições, a mesma tranquilidade e estabilidade constitucional? Como entender que um processo eleitoral decorra com calma, mas o período seguinte seja marcado por tensão, bloqueios e fraturas institucionais? A resposta, acredito, está menos nas pessoas e mais na arquitetura do sistema político.

A Guiné-Bissau não tem um problema de povo. Tem um problema de pós-processo. É uma democracia onde a vontade popular é expressa com clareza, mas onde as instituições que devem traduzir essa vontade em governação estável continuam vulneráveis a interpretações extensivas, disputas de poder e zonas cinzentas constitucionais. A instabilidade é estrutural, não circunstancial. E por isso, independentemente dos protagonistas, o ciclo tende a repetir-se.

Ao longo das últimas décadas, vários fatores têm fragilizado o equilíbrio institucional: a possibilidade de dissoluções frequentes, o desenho que permite ao Presidente assumir funções executivas, confundindo, na prática, o parlamentarismo com o presidencialismo, a rigidez no processo de eleição da mesa parlamentar e a judicialização seletiva da política. Com o tempo, estas normas foram sendo ajustadas e reinterpretadas para responder às conveniências circunstanciais do homem no poder, e não às necessidades estruturais do Estado. O resultado é um sistema que foi perdendo coerência interna e capacidade de produzir estabilidade, tornando-se cada vez mais vulnerável a impasses e crises recorrentes.

É óbvio, que nenhum destes elementos, por si só, explica a(s) crise(s). Mas juntos criam um sistema onde a estabilidade depende demasiado da personalidade dos líderes e demasiado pouco da força das instituições.

O episódio recente descrito como “golpe” é ilustrativo. Não pelo enredo em si (suficientemente complexo e contraditório para gerar múltiplas leituras) mas porque funciona como amplificação das fragilidades já existentes. As versões públicas do que aconteceu são divergentes, e alguns detalhes narrados, desde alegadas detenções com telemóvel funcional até nomeações vindas de círculos próximos ao Presidente deposto, alimentaram interpretações que vão da tentativa de golpe clássico à hipótese de um auto-golpe político. Mais do que escolher uma versão, importa reconhecer o essencial: o episódio não criou a instabilidade; apenas a expôs à luz do dia.

Mas a Guiné-Bissau não existe isolada. Vive num continente onde as narrativas políticas se globalizaram, onde as redes sociais se tornaram campo de batalha e onde novas estéticas de poder, como a do “golpe patriótico”, ganharam força. Basta observar o fenómeno Ibrahim Traoré no Burkina Faso: um líder jovem cuja imagem se tornou um produto político pan-africanista, difundido com profissionalismo, intensidade e um claro enquadramento ideológico que contrasta com as democracias liberais. Esta “estética de força”, combinada com mensagens de soberania e resistência ao Ocidente, tornou-se parte de uma disputa geopolítica mais ampla, onde diferentes potências (ocidentais e não ocidentais) procuram moldar percepções e influenciar alinhamentos.

A Guiné-Bissau acaba por dialogar, inevitavelmente, com este ambiente. Não porque seja palco direto dessa disputa, mas porque vive numa região onde a luta pelas narrativas é tão intensa quanto a luta pelo poder. A instabilidade interna torna qualquer país mais permeável a discursos externos — e esse é, talvez, o maior risco a médio prazo para qualquer democracia frágil.

Cabo Verde observa estas dinâmicas com a serenidade de quem consolidou um percurso sólido. Somos uma democracia estável, institucionalmente madura e com uma cultura política que rejeita soluções de força. Ainda assim, vivemos num mundo onde narrativas atravessam fronteiras com a mesma velocidade que emoções se espalham em redes sociais. Os dados do último Afrobarómetro mostram que 71% dos cabo-verdianos preferem a democracia, mas deixam, do outro lado, um espaço residual que deve ser lido com atenção. Não porque esconda simpatias autoritárias, mas porque pode tornar-se terreno fértil para discursos de frustração, descrença e soluções imediatistas.

Há, contudo, uma particularidade cabo-verdiana que importa sublinhar: a nossa ancoragem estrutural ao espaço ocidental. O nosso modelo político, a nossa cultura institucional, a nossa economia aberta e regulada e, sobretudo, a nossa diáspora profundamente integrada em sociedades democráticas como os EUA, Portugal, França ou os Países Baixos, criam um ecossistema que reforça o nosso compromisso com o Estado de Direito e com a Liberdade. Esta ligação é histórica, económica, cultural, identitária e é um dos pilares invisíveis da nossa estabilidade.

A crise da Guiné-Bissau merece ser observada com respeito e solidariedade. Não para julgar, mas para compreender. Não para apontar culpas, mas para refletir sobre a importância das instituições como fundamento de qualquer democracia. Porque, no fim, é isso que distingue a paz das urnas da paz constitucional: a capacidade do Estado de transformar civismo em governabilidade, voto em legitimidade e pluralismo em estabilidade.

Que a Guiné-Bissau encontre esse caminho.
E que Cabo Verde continue a proteger o seu.

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Autoria:Luís Carlos Silva,5 dez 2025 8:10

Editado porAndre Amaral  em  5 dez 2025 8:10

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